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No blogue escrevo meus próprios textos (contos, crônicas, poemas, prosa poética) e também sobre os mais variados assuntos: literatura, cinema, viagens, gastronomia, amenidades, humanidades, música. Tudo que me toca. E que possa tocar os leitores.

segunda-feira, 29 de março de 2010

Depois da chuva

25/3/2010. 14h59. Chove em São Paulo, cats and dogs, a cântaros.
A rua onde moro se torna uma torrente que desce, selvagem, do alto do bairro. Da janela vejo as sarjetas desaparecidas por baixo de um manto de água que desce, arrastando tudo. Lixo, muito lixo: copos de plástico, garrafas plásticas, papel de toda espécie, sacos de lixo, embalagens, caixas de papelão. Daqui do alto, isso tudo parece um circo macabro dos restos que descarta a população. Por que as pessoas jogam o lixo nas ruas? Não sei responder. Na minha família, desde crianças, sempre fomos ensinados a pôr o papel de bala no bolso ou na bolsa, e só descartá-lo na lixeira de casa. Faço isso até hoje, sejam balas, papéis de cartão de crédito, pequenas embalagens -- que em geral prefiro nem pegar e trazer o produto nas mãos mesmo, sem sacolinas ou sacos de papel --, ponho tudo na bolsa, me lembrando sempre que minha mãe, há 40 anos, já dizia: 'as pessoas jogam lixo nas ruas, não percebem que entopem os bueiros?' Sabedoria é bom, e eu gosto.
O trânsito começa a ficar inviável: buzinaços de vários lados chegam a meus ouvidos, os semáforos estão desligados, um caos se instala nos cruzamentos. Alguns carros sofrem pane por conta do excesso de água e simplesmente param atravessados no meio da rua, tornando ainda pior o que já não está nada bom.
Um rapaz tenta atravessar a rua (provavelmente está atrasado pra algum compromisso que não pode adiar: uma consulta médica, uma entrevista de emprego, um encontro marcado há dias), mas a água da sarjeta desce veloz, molhando seu jeans até a altura da canela. Ele corre, determinado, e se refugia embaixo do toldo da padaria. Agoniado, olha o relógio diversas vezes, mas está impossibilitado de seguir em frente: a chuva o mantém refém por algum tempo.
Eu interrompo meu trabalho num livro que estou copidescando para fazer um recorte no tempo, nesse tempo urbano que gira veloz e atroz, e me dou a oportunidade de perceber a chuva, os estragos, os fatos, as pessoas e seus pequenos dramas lá embaixo.
Enquanto vou de uma janela a outra da casa, observando e fotografando tudo mentalmente, vários pensamentos me chegam: existe um rapaz refém da chuva, em agonia para cumprir seu compromisso. Mas nada ele pode fazer. À minha direita na cidade, direção norte, o casal Nardoni presta seu depoimento ao júri, tentando provar inocência. A mãe da pequena Isabela segue 'confinada' no fórum, incomunicável. Uma angústia me toma ao pensar que, além da dor da sua perda, ela agora se vê refém de quatro paredes, provavelmente sem janelas, apenas a luz artificial, o barulho de uma torneira que goteja, devagar e lentamente, a sensação de sufocamento e de alienação imposta. Leio na UOL o texto do jornalista Rogerio Pagan, testemunha do caso, sobre as condições do confinamento. Eu, que sou claustrofóbica, me agonio...
Helicópteros começam a cruzar mais intensamente o céu, aqui perto. Será apenas a chuva?
À minha esquerda, penso na minha filha que está na faculdade neste momento. Apavorada com raios e trovões, imagino que ela esteja em maus lençóis. Nesses momentos de chuva, minha avó falava em voz alta: "Santa Bárbara!" Quando ela não queria que chovesse, colocava um ovo no quintal pra Santa Clara e, segundo ela, a chuva não vinha...
No final do dilúvio, há estragos na cidade toda: ruas alagadas, carros arrastados, queda de árvores, caos no trânsito, pessoas molhadas da cabeça aos pés, gente que não conseguiu chegar onde queria, gente que levará horas para chegar em casa.
Tenho terapia nesse dia. No final da tarde, saio apressada da garagem. Paro na locadora para entregar um filme, molho meus sapatos nas poças da calçada. Sigo adiante em meu caminho em direção ao dia da semana que me salva, me conforta, que me recompõe depois de tudo.
Depois da chuva, me sento e olho nos olhos do alívio para minhas dores. Me sinto acolhida como nunca, ganho confiança, deixo lá fora a casca dura da proteção que me salva do que é difícil. Ali, estou nua, apenas as minhas ideias e sentimentos a girar. Enfim posso ser Sandra Brazil, carne e nervos expostos. A chuva passou completamente. Parece que um deus sereno se instala dentro de mim. Ali, me deito, e posso então chorar.

quinta-feira, 25 de março de 2010

Autorretrato

Autorretrato

É preciso lucidez
para se enxergar assim
(tão nitidamente)
dentro da dor.
E arte
-- para não se deixar contaminar por ela.
(Maria Lúcia Dal Farra. Livro dos possuídos. Iluminuras, 2002)

segunda-feira, 22 de março de 2010

Sob o domínio de Sade

Sob o domínio de Sade

(...) A sepultura e a alcova, em blasfêmias fecundas,
Nos dão de quando em vez, como boas irmãs,
Os prazeres do horror e as carícias malsãs.(...)
Charles Baudelaire, "As duas boas irmãs"


Há urgência neste apelo.
Uma dor ecoa nesse chamado.
Uma ordem requere sua chegada.
Hermes, apresse sua porção alada.
Preparo-me, impaciente, diante de um toucador imaginário.
Nove minutos e noventa passos distanciam-nos da consumação.
Determino data, hora, local para que se realize o meu capricho. Minha ânsia atroz.
Descomponho o outro, atiço-lhe o orgulho como se remexe uma fogueira. Quero que lhe doam essas ínfimas brasas. A pele marcada por pequenos sinais, souvenirs do sinistro prazer.
Ordeno que venha rápido. O sofrimento e as agruras da minha pressa e determinação.
Demarco todos os meus desejos e caprichos na ponta de um salto agudo imaginário, que perfura dolorosamente o seu receio, a fazer da fera bicho manso e dócil. Medo de cometer um erro sequer e perder-se na minha lâmina pensante. Impossível atravessar o roteiro traçado de viés. A mera miragem de perder a presa no momento de fúria faz da sua vontade músculos e movimento a reagir.
Imprimo-lhe a dor urgente do meu estímulo, a requerer, iminente, que algo atravesse meus sentidos, contundente, preciso, doloroso, brevíssimo. Perfurar, pungir, mortificar até que eu desfaleça. O prazer inoculado nessa transgressão.
O outro a exalar um medo animal, corre, selvagem. O odor alquímico a lhe atrair a esse domínio feminino. Na desabalada, o reflexo ardente de um cristal atinge-lhe em cheio o olhar, lembrando a ampulheta no aparador a escoar seus últimos grãos de areia. Mais um minuto apenas. O desespero impinge ao corpo, então, as torturas mais cruéis: atravessa espaços sinistros e inóspitos, farpas perfuram-lhe o corpo. A gravidade, dolorosa, a sugar-lhe um rio vermelho. Consigo carrega nada além do poder que, ao fim, nos libertará.
Pressinto sua chegada. O calor que sobe em vapores etílicos entorpece a determinação de lhe negar três vezes.
Uma voz poderosa brada que se abram as portas deste reino. A ponte levadiça desiste de oferecer resistência. Cavalariços abrem caminho a ele que chega. Cavalos, indomáveis, exalam algo indizível. As mulheres calam-se à sua passagem.
Inserido na extremidade do destino. Aplico um punhal fino na sua vontade, retalho as pretensões de seu orgulho masculino, rasgo-lhe os códigos preestabelecidos. Em gotas ferventes um unguento poderoso a arrancar-lhe a pele. Enceno um escárnio de sua indefesa condição. Deusa absoluta desse capítulo da história humana.
Premeditada, descarno por um instante a vendeta feminina. E, paradoxo, entrego-me aos braços ferozes e tirânicos. Esfolada viva, permito que lâminas finíssimas escalpem e dilacerem o que há em mim. Um prazer sórdido apodera-se de meus nervos expostos. E, do alto do meu orgulho, profetizo um mundo maldito e cruel.
E no ápice dessa tortura, algo abocanha o núcleo do amor. O poder do elixir que perpetua a espécie expande-se num silêncio bruto.
Algo congela-se num tempo histórico.
Um mundo inteiro interrompe seu curso.
Em repouso absoluto, corpos recuperam essências.
Hermes, enfim, cumpriu o prometido.

Poesia

Acordo com um e-mail do Xiqueto: "seu poema está no destaque da página principal do Verso e Prosa"...
Fui lá e conferi.
Quem gostar de poesia e quiser conhecer o Verso e Prosa, aí vai o link:

http://versoeprosa.ning.com/

domingo, 21 de março de 2010

Outono

Outono dentro da história.
Agora, só quero descansar nos meus sentimentos.
Cinema em dia, amigos em dia, mojitos e vinho em dia, volto a ser a mesma de sempre, essa mulher que quer ganhar o mundo.


"O desejo
é a mais cruel
das estações."
(Maria Rita Kehl. In Processos Primários)

quinta-feira, 18 de março de 2010

Aprecie com moderação

http://versoeprosa.ning.com/profiles/blogs/aprecie-com-moderacao

Além deste blogue, agora tenho uma página lá no Verso e Prosa (link acima). Lá pretendo "derramar todas as palavras", como diria Ana Cristina Cesar.

"(...) Palavras pra esquecer / Versos que repito / Palavras pra dizer / De novo o que foi dito / Todas as folhas em branco / Todos os livros fechados / Tudo com todas as letras / Nada de novo debaixo do sol."
(Palavras. Titãs)

quarta-feira, 17 de março de 2010

Outra estação

Daqui a alguns dias será outono... Nem acredito como 2010 está passando tão rápido diante de mim. Pisco os olhos preguiçosos: era reveillon, foi carnaval, e lá se foram algumas semanas. Já completei n trabalhos, e já tenho outros tantos aqui diante de mim para terminar.
A velha pergunta: por que corremos tanto? Para quê? Para onde? Será que precisamos acelerar assim? Se fôssemos mais devagar não chegaríamos no mesmo lugar? O que perdemos ao longo do caminho nessa velocidade cibernética? O que ganhamos? Jamais paro pra pensar nisso. Não tenho tempo. Aliás, não me dão tempo.
Mal me entregam um trabalho, e alguém já me liga e pergunta se conseguirei entregar no prazo, pois já está atrasado, e é preciso fechar o arquivo para impressão, e o livro tem de ficar pronto para o lançamento, que já está anunciado na mídia, e não há como esticar o prazo, e... e... Fico ouvindo em silêncio, pensando por que um livro não pode ser feito no seu tempo, no seu tempo de livro -- não de produtos fabricados em série --, não pular etapas, não pressionar os colaboradores, fazê-lo com calma, imprimi-lo sem matar do coração o técnico da gráfica com tantos telefonemas pressionando para que dê "nó em pingo d'água". Eu mesma já sofri desse mal: com a sorte de que ninguém morreu do coração por conta dos meus apelos, e que um dia desci desse bonde amalucado tendo noção de que não queria mais viver assim.
É difícil responder a certas perguntas, e eu não entendo por que corro tanto, deixo pequenas coisas prazerosas de lado para dar conta do trabalho, pulo um cinema aqui e ali para finalizar um projeto, deixo de jantar com minha filha, ou amigos, ou família, namorado, porque estou sempre com a sensação de estar atrasada. Mas não interrompo o processo para entender: estou atrasada mesmo? Ou alguém deu um start e eu comecei a correr sem me dar conta?
Bem, é outono quase, a deliciosa estação. E falando de tempo, tenho pensado em aproveitar mais a luz dourada que o sol trará nos próximos dias, andarei mais pelo parque, irei mais à Pinacoteca, serei mais vezes espectadora do pôr do sol, verei as ruas de Perdizes com mais poesia e encanto, caminharei pela Paulista com olhos de quem quer ver o que há de melhor. Isso é um comprometimento que tenta responder àquelas perguntas e mudar o curso dessa história, ao menos, da minha história e daqueles que estão ao meu redor.
Aqui da minha janela de trabalho, posso ver o verde, coberto de azul, e edifícios que são meu skyline paulistano, tudo amarelando no final de tarde. Uma onda de sentimento invade, inexplicável, uma ternura em relação ao tempo, ao conforto e aconhego que esse dourado traz consigo. Sorte, muita sorte a minha trabalhar neste lugar e ter esse cenário tingido pelo outono que está chegando. Estarei pronta quando ele vier e direi as palavras mágicas: "pode entrar". Na minha casa e no meu coração.

"Os mensageiros

Palavra de lesma numa lâmina de grama?
Não é minha. Não aceite.

Ácido acético numa lata selada?
Não aceite. Não é genuíno.

Anel de ouro com reflexo de sol?
Loas. Loas e mágoa.

Geada na folha, o caldeirão
Imaculado, estalando e falando

Sozinho no alto de cada um
Dos nove Alpes negros.

Distúrbio nos espelhos,
O mar estilhaçando seu cinza --

Amor, amor, minha estação."

(Sylvia Plath. Poemas. Trad. Rodrigo Lopes e Maurício Mendonça. Iluminuras, 1994)

terça-feira, 16 de março de 2010

Retrô

Ontem tive uma experiência muito além do meu cotidiano. Eu, que queria surpresas, me vi surpreendida pelo que há de melhor em mim. Algo aqueceu uma brasa adormecida, calada e resignada. Nada como uma centelha tomando formas de labaredas, ganhando espaço e descortinando nossa rotina.
Eu que não esperava nada de novo no front, agora piso o chão com pensamentos leves, uma vontade de celebração, de amor humano, esse amor por tudo e por todos que se perdeu em algum lugar do caminho.
Num transe imperceptível, fui ao encontro de uma menina que estava sobre uma duna dourada pelo sol. O abraço infinito e carregado de um tempo que não se conta me levou ao princípio de tudo. Nesta imagem, eu tinha 18 anos, e um mundo pela frente, uma vida para sonhar. A leveza foi tomando conta de mim, de meus pensamentos.
Como num filme, esse meu transe me levou a outro cenário. Um sítio, um caminho entre árvores, chão batido de terra, um portão verde. Um homem me olhou com aqueles olhos que só eu sei. Eu disse 'sim, você está em mim'. E eu estava lá, de pé, 18 anos e toda pureza e inocência do mundo, toda tolerância e paciência. Minha alma de 47 pôde tocar a leveza da juventude. 
Ali naquele portão eu recebi meus pais, sorrindo. Meus irmãos, abraçando-os com a ternura dos meus sentimentos. Então chegaram meus amigos de todos os tempos. Recebi-os um a um. Uma alegria de passado, presente e futuro dourava esse cenário, que era de confraternidade. Eles foram entrando de novo em minha vida -- os que ainda estão comigo, os que já se foram, aqueles que um dia magoei, aqueles que um dia me magoaram. Estavam todos ali, sorrindo e celebrando.
Havia alguém onipresente nisso tudo: minha filha. Sempre. Tudo. Todas as palavras que abarquem o sentimento mais profundo e delicado. Ela está sempre comigo, onde eu for e estiver.
Depois de todos terem entrado, eu fechei aquele portão verde-esmeralda. Como se ali fosse o Taj Mahal, e ele, uma pedra preciosa a se incrustar naquela locação. Embelezando-a, ornando-a, brilhando para tornar ainda mais precioso aquele momento.
Encerrada nesse átimo no tempo, pude ser feliz por alguns minutos, uma felicidade absoluta e verdadeira, todo um mundo de verdades e alegrias. Encerrada nesse lugar confortável pude revelar o que há de bom em mim.

***

Hoje acordei retrô, ainda pulverizada por esse encantamento. A epifania do que aconteceu me leva a repensar situações e a própria vida. Acordei pensando no passado, os meus 18 anos, aquela força de quem espera sorver tudo, todos. O sonho de uma geração. 
Enquanto escrevo este texto, sincronicamente rola uma Elis de "Casa no campo". Não pude deixar de pensar como esta canção fez parte de minha adolescência.
Eu dedico este texto a minha filha, a meus pais, irmãos, cunhados, sobrinha, amores e ex-amores, amigos, amigas, e a todas as pessoas que deixaram e que ainda deixam uma marca indelével no meu caminho.

Casa no campo
Eu quero uma casa no campo
Onde eu possa compor muitos rocks rurais
E tenha somente a certeza
Dos amigos do peito e nada mais
Eu quero uma casa no campo
Onde eu possa ficar no tamanho da paz
E tenha somente a certeza
Dos limites do corpo e nada mais
Eu quero carneiros e cabras pastando solenes
No meu jardim
Eu quero o silêncio das línguas cansadas
Eu quero a esperança de óculos
Meu filho de cuca legal
Eu quero plantar e colher com a mão
A pimenta e o sal
Eu quero uma casa no campo
Do tamanho ideal, pau-a-pique e sapé
Onde eu possa plantar meus amigos
Meus discos e livros
E nada mais.

(Zé Rodrix e Tavito)

segunda-feira, 15 de março de 2010

Hoje é 15 de março, dia de homenagear amigos. Eu instituí que alguns dias do ano são para cantar nossos amigos. Hoje é dia de festa no Oriente. Hoje é dia de Xico Santos.


Impreterivelmente às quartas

Sempre e somente às quartas, ele espera, tenso, cativo e resignado, otimista e ansioso, um sinal, um ponto no céu, um soar de tambor, um signo em fumaça a escalar uma nuvem, um telefone vermelho a anunciar, algo, qualquer código que antecipe a chegada do prazer.
Não saber da sua vinda torna a sorte um lance ansioso de dados. Saber da proximidade de sua chegada acelera mucos e mucosas.
Tomado pelo transe da espera, abre as folhas da janela e espera. Vê, sem entender, marajás feudais e seus haréns que desfilam sobre manadas de elefantes ornamentados com desenhos hindus. Esses príncipes em vestes incrustadas de diamantes e pedras e bordadas a ouro por suas escravas trazem atrás de si gigantescos jarros de prata com toneladas das águas do Ganges. Dezenas de homens-escravos carregam esse capricho palaciano. Mulheres em sáris atiçam-lhe os sentidos, longos e suaves tecidos a recobrir sem esconder, a velar revelando as vontades veludíneas. A cobrir cabelos negros e lisos e longos, deixando apenas as pupilas negras, escuras e penetrantes a menear um sim que é um não, por vezes um não implorando definitivamente um sim.
A cada passo desse cortejo, peças metálicas tilintam e tilintam nas patas elefantídeas, como a provocar um transe, advertindo uma espécie de chegada imponente e suntuosa. Esse cenário encantado torna sua espera suculenta, sua vontade, estimulada, a mera sensação de um toque nesses tecidos carnais eleva pontes.
Hipnotizado por essa visão, tomado por um prazer lisérgico, salta a janela em suas roupas brancas. Tenta compreender... Transita por essa massa colorida que recende a curry e seda. O ruído metálico cada vez mais próximo das patas gigantes faz entorpecer. Os haréns finamente adornados e defendidos, ele tenta tocar, mas lhe escapam. Esbarra em homens vestidos ricamente que marcham no meio da multidão e tocam uma espécie de flauta. Cada um deles traz rodeada no torso uma serpente. Peçonhenta, a naja sobe e sobe dançando encantada sob a música sinuosa que a Índia oferece. Indefesa, ela permanecerá enrodilhada naquele corpo, como a buscar proteção fora de seu hábitat.
Passam camelos. Homens vão sentados, rodeados por enfeites e presentes. A música sedutora do Oriente faz os desejos aquilatarem. Nesse momento, serviçais retiram de jarros o líquido perfumado que atirarão ao chão, para logo em seguida outros forrarem o caminho com milhares de pétalas de flores multicoloridas.
Um rumor toma conta das palavras. Ele não entende os sinais dessa civilização. Códigos interrompidos corrompem a comunicação. Algo acontecerá. Todos sabem, exceto ele.
A massa então abre caminho, a música interrompe-se, as najas acalmam-se sobre seus hospedeiros. Uma aclamação saúda um noivo, uma noiva. O casamento indiano.

Subitamente, ele decodifica todos os signos, e compreende que o transe acabará em segundos. Corre sobre as pétalas perfumadas, derrubando jarros. Um sentimento positivo toma conta dos movimentos e a resignação torna-se peça do passado. Uma transformação toma conta do corpo, e eleva este homem ao status de herói desse nicho feudal. E ele ganha forças indestrutíveis e adagas que abrem duas lâminas no corpo do inimigo. Em segundos esse cortejo exótico e estimulante desencantará. Um som paralelo a este mundo de sonho chega a seus ouvidos.

Alcança enfim a janela e os marajás e haréns vão se diluindo devagar, najas desenrolam-se e escorregam, flores murcham num átimo de tempo. A música vai soando longe. Os perfumes chegam mais brandos aos seus sentidos...
E eis que, ao pular novamente a janela, a realidade retorna instantaneamente, e o som torna-se mais intenso.

Vira-se em direção à porta. Fecha os olhos e ouve um tilintar leve a marcar, numa tornozeleira, os passos dela. Os passos dela. Ele conta milímetros do caminho, da calçada até o portão, depois, do portão até a porta principal... depois... Sente todas as cavidades e os fluxos no coração; músculo, artérias e veias a acelerar. Tamanha é essa presença.

Olhos fechados, e sândalo atinge em cheio um de seus sentidos. As vontades de uma adaga repartem sua lâmina em duas antes mesmo de atingir o alvo.

Uma imagem diáfana surge envolta nos tecidos mais finos, bordados com pedrarias trazidas do Oriente, adornado com as joias mais raras e delicadas que usou Taj Mahal, Ornamento do Palácio. Um diamante raríssimo crava-se na narina direita, a brilhar e iluminar o conhecido. O som interrompido da tornozeleira sinaliza que o prazer está ali. O farfalhar da seda com suas pedrarias revela instintos de um kamasutra longínquo.

Olhos heroicos permanecerão fechados. Tocando o infinito.





segunda-feira, 8 de março de 2010

Anexo

É 8 de março, postei sobre o feminino, mas me esqueci que sempre gosto de deixar um trecho literário, um poema...
Lá vai:

"Elogio da memória

O funil da ampulheta
apressa, retardando-a,
a queda
da areia.

Nisso imita o jogo
manhoso
de certos momentos
que se vão embora
quando mais queríamos
que ficassem."

(José Paulo Paes. Socráticas. Companhia da Letras, 2001.)

Esse encontro feminino

Em meio ao caos, projeta-se um esconderijo onde o bom e o belo instalam-se à beira de pequenos prazeres urbanos. Templo dedicado à desconstrução de mitos midiáticos. O humor a chamuscar ineptos andantes e manobras políticas em marcha à ré.
Numa espécie de transe, trocas dos tempos do descobrimento driblam toda desilusão – espelhos por penas, pentes por dentes de fera, urucum e um pajé pós-modernos na bolsinha furta-cor.
A arte e o humor são sempre a melhor forma de fuga.
Nesse bunker emocional, surge, sorrateiro, um ménage à la mode, em que o terceiro apenas acentua o culto que nos dedicamos, semanal e religiosamente. Esse prazer, disso não há dúvida, de se projetar no outro feminino e ver-se refletida inteira, como num espelho bisotê. Alegria única neste tempo de estranhas Cruzadas. Um novo conceito de felicidade a relativizar a dor que é viver num tempo a se contar.
Pela força do hábito, deslizamos pelos meandros de que se forma a alma feminina. Descendo, descendo, interrompendo e retomando, para então subir, subir, rápida e freneticamente, surpreendendo, chocando – manobras típicas desse ser que dá à luz ideias e homens, esperanças e sonhos.
Entidades ambíguas esculpidas no ser-fazer, onipresentes e sarcásticas, dominadoras e decididas, frágeis e delicadas como frutas a implorar que ósculos suaves a despedacem. A enfrentar seus inimigos sem armas, apenas as palavras a picotar as estocadas daqueles que corrompem a lei da evolução da espécie.
Apesar de toda desilusão, uma súplica. Sumária, ecoa, escoa e penetra ouvidos. O desejo, eterno e lúbrico, pela saliência pontiaguda, primitiva e prazerosa, desse nosso inimigo antidarwiniano.

Sandra Brazil

sábado, 6 de março de 2010

Educação

Ontem foi TGF (Thanks God it's Friday!). Apesar da oportunidade da SP Restaurant Week, em que se pode conhecer restaurantes fora do alcance do nosso orçamento em dias normais, achei melhor não arriscar. Explico.
Fomos eu e Isadora ao L'Amitié no meio da semana, animadas com a possiblidade de conhecer algo novo, fora do nosso circuito. O lugar é ótimo, bom recanto para casais românticos à francesa e mesmo para amigos discretos. No entanto, na terça-feira, apesar do bom vinho que o garçon me indicou, não pude deixar de notar que o restaurante parecia lotado além da capacidade, os habitués estavam incomodados pela invasão dos turistas atraídos pelo cardápio de R$ 39,00. Numa mesa próxima da nossa, sentou-se um casal claramente habituado a ir ali. Mas estavam incomodados. Observei o que poderia ser. E o que viria a seguir me esclareceria. O garçon que nos atendeu era extremamente educado, antigo da casa pelo que percebi. Conhecia os clientes pelo nome e sem perguntar já trazia a sua bebida. Para nós, que escolhemos o menu de R$ 39,00 da Semana, percebi que fomos impelidas a deixar a mesa antes do tempo habitual. O pratinho da entrada foi retirado enquanto eu ainda comia. Minha filha fez aquele olhar que me dirige sempre que não gosta de alguma coisa. Não liguei, continuei mastigando minha iguaria sem o prato abaixo de minha boca mesmo... Escolhemos o principal, e ele veio logo. Mal tínhamos terminado e os pratos foram retirados rapidamente, para na sequência sermos perguntadas pela sobremesa. Eu ainda saboreava o vinho, mas tive que interromper e dizer o que queria. Ela veio a jato, assim como a pergunta sobre o café. Isadora, que tem mais personalidade que eu, ficou incomodada apesar da sua juventude. Em meio a tudo isso, quatro mesas à nossa esquerda, um grupo de jovens gritava (sim, gritava) coisas desconexas em meio à refeição. Fiquei chocada quando disseram em voz alta, bem alta, duas vezes a palavra "tripa". Como o restaurante estava menos lotado nesse momento, houve um silêncio constrangedor nas mesas ao redor. Um casal frequentador da casa acabou o jantar e não pediu sobremesa. Saíram para voltar somente depois da SP Rest Week, imagino... Eu que detesto esse tipo de comportamento fiquei ali pensando na sorte que tenho, de ter criado uma pessoa melhor pro mundo: minha Isadora. Ali, à minha frente, ela saboreava seu prato tranquila, falando de cinema, das suas aulas de esquizoanálise, de família e de amenidades.
Portanto, ontem, decidi que vou esperar para conhecer outros restaurantes, nem que tenha que pagar caro mesmo. Não gostei da sensação de me sentir numa linha de montagem. Claro que não estou criticando o L'Amitié. Preciso conhecê-lo no seu habitat natural, sem a sensação de que sou uma turista mal avisada.
Então, ontem, para substituir o programa, decidi ir ao cinema. Não conhecia o Espaço Unibanco do Bourbon, perto de minha casa; aliás, tenho preconceito de cinema de shopping. Mas na falta do carro, peguei um ônibus e em menos de cinco minutos estava atravessando a rua para entrar no Bourbon. Fui ver "Educação". E a sensação de estar ali naquela sala escura de cinema me trouxe paz de espírito, uma vontade de voltar à Inglaterra, de fazer um curso, de viajar de novo.
Hoje é sábado, dia de encontrar os amigos. O bar Balcão me espera e sem dúvida poderei saborear uma taça de vinho sem a pressa de terça-feira última. Jogarei conversa fora e depois de algumas horas, satisfeitos e a conversa em dia, pediremos a conta. Nada como estar em casa.

"É sempre mais difícil
ancorar um navio no espaço."
(Ana Cristina cesar. A teus pés. Ática, 1998)

quinta-feira, 4 de março de 2010

Felicidade clandestina

Daqui do 15o andar, desta janela-tela de cinema que é a moça do tempo dos meus dias, sinto o calor que vai voltando devagar, tomando conta, trazendo mais gente pras ruas, mais ruídos, mais imagens. Os dias ingleses vão sendo deixados pra trás. Os braços nus desfilam nas calçadas e os olhos esperam algo que não se sabe, mas pode acontecer. Uma surpresa, uma carta, um e-mail, um sms, uma msg por msn, comunicação por tambores, sinais de fumaça, flores? Todos ficam alerta. Tudo pode acontecer. Pergunto a alguém se gosta de jazz, a resposta é sim. Vou ouvindo StanGetz&João Gilberto, anos 1960. O mundo me parece tão encantado nessa época: Copacabana, bossa-nova, os calçadões da praia. Um dezembro-anos-dourados volta na minha memória -- um ponto de felicidade no universo, uma felicidade clandestina.
Trabalho como Penélope: teço e desfio, teço e desfio. Aguardo um Ulisses desenhado ao longo da vida, mas neste mundo moderno, onde estarão os Ulisses? Ulisses estará ainda tomado pelo canto da sereia? Ou parte veloz ao meu encontro? Tecerei até o fim, sagitarianamente obstinada.
Uma discreta tranquilidade vai tomando conta, dia a dia. O céu por testemunha, e esta janela também. Todos os objetos deste cômodo têm gravado em si os meus apelos e minhas alegrias. E as flores do aparador também. Uma taça, uma luva, um livro, um disco, um ingresso, uma possibilidade é uma gota plena de esperança.

"Nada, esta espuma

Por afrontamento do desejo
insisto na maldade de escrever
mas não sei se a deusa sobe à superfície
ou apenas me castiga com seus uivos.
Da amurada deste barco
quero tanto os seios da sereia."

(Ana Cristina Cesar. A teus pés. Ática, 1998)

quarta-feira, 3 de março de 2010

Emily Dickinson

Mais quente que ontem. E as promessas ressurgem. Ontem abri o blogue com Safo de Lesbos, a grega. Hoje, desci da estante o que na verdade deve ser de cabeceira: a norte-americana Emily Dickinson. Emily chegou a mim por meio de uma tradução de Haroldo de Campos, há muito tempo. Fui garimpando outras traduções e edições bilíngues para poder conhecê-la melhor (realmente sou contra a queda do trema na nova norma ortográfica! Bilíngües para marcar a pronúncia.). Estamos no meio da semana, já revi alguns amigos que há tempo não via, tracei dois cinemas, duas sessões de dvd, dois restaurantes novos para aproveitar a SP Restaurant Week. Pergunto ao Chiqueto se ele quer ir comigo à SP Restaurant Week. Distraído, ele me pergunta: pra ver o quê? E eu respondo: não é pra ver, é pra comer!... Fashion Week, Restaurant Week, THe Week, é muita Week para o léxico interno. Estamos em março, o verão vai se acabando e logo chega a bela estação: o outono. A luz vai ficar mais dourada, as coisas terão um aspecto amarelado, sépia até. O sépia que tinge a saudade e as antigas fotos de família.

"A Distância não fica
onde a raposa mora
nem a voo de pássaro
se calcula

A Distância é
de mim até você
Meu Bem"

(Alguns poemas - Emily Dickinson. Trad. José Lira. Iluminuras, 2006)

terça-feira, 2 de março de 2010

Dia de chuva. Dia inglês. Dia vestido de cinza. Em dias assim, morre um pouco daquela alegria solar do verão, alegria que faz parecer tudo possível, tudo mais próximo e ao alcance, quando os sonhos são vividos nas areias quentes das praias.
Mas em dias ingleses nasce outro tipo de sentimento: não sei explicar. Algo morno aloja lá dentro, faz rever coisas passadas, envolve nossos pensamentos como se fosse buclê. Somos tomados por uma vontade de estar dentro, mas os olhos vão longe longe nesse horizonte cor de chumbo.
Eu sempre gostei de dias ingleses. Parece que acalmam meu coração e esse tigre interno que vive rondando, agoniado. Quando pequena, os dias assim eram vencidos com pipoca e chá à tarde, ou bolo de fubá quentinho. Agora nessa vida madura, apenas contemplo o bem-estar que me traz esse friozinho e esse céu londrino e essa rua que vejo daqui do alto, pontilhada de sombrinhas coloridas. O café quente me espera sorrindo sobre a mesa de jantar. A cafeteira italiana escorre a gota que se perdeu. A xícara está a um passo de tornar-se útil novamente. E as porcelanas a me espreitar lá da cristaleira.
Dias assim fazem nascer outro tipo de vida: menos praieira, menos chopp, menos cerveja, menos corpo a se mostrar. Mas o que substitui isso tudo é o vinho, o recolhimento e uma espécie de oração silenciosa, que me faz lembrar que estou viva.

Não sei ao certo

Como num passe de mágica, tomada por algo inspirador, não sei se por Safo ou por Cleis, decido iniciar um blogue. Não sei ao certo se terei a tenacidade de escrever como se deve. Mas, como tudo na vida, tentarei.
Por que Safo, por que Cleis? Bem, a poesia de Safo de Lesbos sempre teve muito espaço aqui na estante de casa. E quando era pequena minha filha Isadora, eu às vezes me referia a ela como "minha pequena Cleis", a filha da poeta grega. E por mais de uma vez transcrevi a Isadora o poema de Safo "O tesouro", dedicado a sua amada Cleis.
Portanto, como tudo que faço na vida tem um combustível chamado Isadora, a ela dedico este blogue, com o mesmo amor que Safo descreve em seu poema à amada Cleis.

"eu tenho uma linda menina; com douradas flores
ela se parece: minha Kleís, meu bem-querer --
nem pelo reino da Lídia inteiro, nem pela adorada
[Lesbos] eu a trocaria"

(In Safo de Lesbos - Poemas e fragmentos. Trad. Joaquim Brasil Fontes, Iluminuras, 2003)