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No blogue escrevo meus próprios textos (contos, crônicas, poemas, prosa poética) e também sobre os mais variados assuntos: literatura, cinema, viagens, gastronomia, amenidades, humanidades, música. Tudo que me toca. E que possa tocar os leitores.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Ainda o bendito amor: Adélia Prado

Casamento


Há mulheres que dizem:

Meu marido, se quiser pescar, pesque,

mas que limpe os peixes.

Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,

ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.

É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,

de vez em quando os cotovelos se esbarram,

ele fala coisas como "este foi difícil"

"prateou no ar dando rabanadas"

e faz o gesto com a mão.

O silêncio de quando nos vimos a primeira vez

atravessa a cozinha como um rio profundo.

Por fim, os peixes na travessa,

vamos dormir.

Coisas prateadas espocam:

somos noivo e noiva.


(Adélia Prado. Poesia Reunida. São Paulo: Siciliano, 1991.)

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Bendito seja o amor: Adélia Prado

Ensinamento

Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
"Coitado, até essa hora no serviço pesado".
Arrumou pão e café,
deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.

(Adélia Prado. Poesia Reunida. São Paulo: Siciliano, 1991.)

Maldito seja o amor: Henry Miller e Anaïs Nin

"(...) Imaginei por um momento um mundo sem Henry. E jurei que no dia que perder Henry, eu matarei minha vulnerabilidade, minha capacidade para o verdadeiro amor, meus sentimentos, com a devassidão mais frenética. Depois de Henry não quero mais amor. Só foder, por um lado, e solidão e trabalho, por outro. Nada mais de mágoa.
Depois de não ver Henry por cinco dias por causa de mil obrigações, não pude suportar. Pedi a ele para se encontrar comigo durante uma hora entre dois compromissos. Conversamos por um momento, então fomos para um quarto do hotel mais próximo. Que necessidade profunda dele. Só quando estou em seus braços as coisas parecem direitas. Depois de uma hora com ele, pude continuar o meu dia, fazendo coisas que não quero fazer, vendo pessoas que não me interessam.
Um quarto de hotel, para mim, tem a implicação de voluptuosidade, furtiva, fugaz. Talvez o fato de não ver Henry tenha aumentado a minha fome. Eu me masturbo frequentemente, com luxúria, sem remorso ou repugnância. Pela primeira vez eu sei o que é comer. Ganhei dois quilos. Fico desesperadamente faminta, e a comida que como me dá um prazer duradouro. Nunca comi desta maneira profunda e carnal. Só tenho três desejos agora: comer, dormir e foder. Os cabarés me excitam. Quero ouvir música rouca, ver rostos, roçar-me em corpos, beber um Benedictine ardente. Belas mulheres e homens atraentes provocam desejos em mim. Quero dançar. Quero drogas. Quero conhecer pessoas perversas, ser íntima delas. Nunca olho para rostos inocentes. Quero morder a vida e ser despedaçada por ela. Henry não me dá tudo isso. Eu despertei o seu amor. Maldito seja o seu amor. Ele sabe foder como ninguém, mas eu quero mais que isso.
Eu vou para o inferno, para o inferno, para o inferno.
Selvagem, selvagem, selvagem."

(Anaïs Nin)

Por que escrever: a bela Anaïs Nin

"Por que as pessoas escrevem? Já me fiz tantas vezes esta pergunta que hoje posso respondê-la com a maior facilidade. Elas escrevem para criar um mundo no qual possam viver. Nunca consegui viver nos mundos que me foram oferecidos: o dos meus pais, o mundo da guerra, o da política. Tive de criar o meu, como se cria um determinado clima, um país, uma atmosfera onde eu pudesse respirar, dominar e me recriar a cada vez que a vida me destruísse. Esta é a razão de toda obra de arte.
Só o artista sabe que o mundo é uma criação subjetiva, que é preciso escolher, selecionar. A obra é a concretização, a encarnação do seu mundo interior. Ele espera impor sua visão pessoal, partilhá-la com os outros. Se não atinge esta última finalidade, o verdadeiro artista persiste assim mesmo. Os poucos momentos de comunhão com o mundo valem esse sofrimento, pois finalmente esse mundo foi criado para os outros como um legado, como um dom destinado a eles.
Também escrevemos para aprofundar o nosso conhecimento de vida. Para atrair, encantar e consolar. Escrevemos para acalentar nossos amantes. Para degustar em dobro a vida: no momento preciso e retrospectivamente, na sua lembrança. Escrevemos, como Proust, para tornar as coisas eternas e para nos convencermos de que elas o são. Para podermos transcender nossa vida e alcançarmos o que existe além dela. Escrevemos para aprender a falar com os outros, para testemunhar nossa viagem ao labirinto. Para abrir, expandir nosso mundo quando nos sentimos sufocados, oprimidos ou abandonados. Escrevemos como os pássaros cantam, como os primitivos dançam seus rituais. Se você não respira quando escreve, não grita, não canta, então não escreva porque sua literatura será inútil. Quando não escrevo, meu universo se reduz; sinto-me numa prisão. Perco minha chama, minhas cores. Escrever deve ser uma necessidade, como o mar precisa das tempestades – é a isto que eu chamo de respirar."

(Anaïs Nin)

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Das coisas mais belas da vida

A música é uma das coisas que me tiram da minha condição mundana. É como se ao estar tomado pelas notas, estivéssemos conectados a uma dimensão desconhecida. Lembro das vezes que fui ouvir algumas peças na igreja de Saint-Martin in the Fields, em Londres, e agora, recentemente, numa pequena igreja perto de Notre Dame, em Paris. Não entendo de música clássica, mas sou uma ouvinte respeitosa e sensível, e fico ali atenta, tomada por aquele som que adentra os sentidos, e quando você menos espera sequestra seu coração. Uma emoção inesperada toma conta, e você pensa: de onde veio isso? Fico sempre emocionada com os acordes mais arrebatados, e penso nesses momentos como é bom estar viva, estar ali naquele lugar, e poder fazer parte daquilo. Naquele exato momento penso que nasci para me dirigir àquele concerto, porque a vida torna-se belíssima com a música e a emoção que ela provoca.
Saio sempre de um concerto ou de uma ópera emocionada, a sensação de que ali, naquela igreja simples, bancos duríssimos, em que paguei 3 euros para entrar, eu poderia passar minha vida ouvindo aquelas notas, noites a fio. Depois, casaco para enfrentar a neve lá fora, levaria nos ouvidos e no coração todos aqueles sons. É inverno, mas aqui dentro são só acordes, música, instrumentos, e meu coração batendo forte. Um calor que faz esquecer a temperatura, como se uma lareira aconchegante se instalasse em mim, eu me sentasse confortavelmente e em paz comigo e com tudo e pudesse conversar com deus. Uma espécie de oração mediada por um sentimento que só a música com seu poder é capaz de provocar.
Mas não só de música clássica vive o homem... Nova Orleans que o diga! Dos meus ouvidos, do meu sentimento, não saem jamais uma canção belíssima, uma das mais lindas que já ouvi: "In a sentimental mood", do grande Duke Ellington, interpretada por ele e o meu preferido no sax, o inesquecível John Coltrane. É para jamais esquecer esse piano, esse sax. Nem dos ouvidos, nem do coração.
Quem viver, verá, é só acessar o youtube... e se emocionar.
(http://www.youtube.com/watch?v=sR13ECD71xU)

O poeta Robert Frost

The road not taken


Two roads diverged in a yellow wood,
and unfortunately could not travel both
be one traveler, long I stood
and watched one of them as far as I could
to where it disappeared into the undergrowth.

Then took the other, as just as honest,
and having perhaps the best reason
because the pastures were more floods
and asked to be tour
but who had been there
they had been worn almost like really

and this morning both alike tended
leaves no footprint on blackened turn.
Ah, let the first road for another day!
And even knowing that a path leads to another,
I doubted if I should ever come back.
And I'll be telling this with a vision
somewhere, by the times to come;
Two roads diverged in a wood, and I,
I took the one less traveled by,
and that has made ​​all the difference.

Robert Frost (1874-1963)

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Resposta a "Carta encontrada numa garrafa" (postagem de 20.9.2011)

Querido,

Passeio sobre uma areia branca, como aquela em que costumávamos caminhar, meio desgarrados, mas ligados, naquelas praias de uma geografia abençoada. Estou absorta, como em geral costumo estar. Pensando, pensando. Que gosto muito de pensar! E quando penso, vou compondo tudo. E também penso no que sinto, no passado, no futuro, e nas coisas do mundo, e na geografia, e nas pessoas.
Estou absorta, mas não tão absorta a ponto de não ver que sobre a areia branquíssima deste lugar lindo jaz uma.. uma... garrafa. Sim! Uma garrafa.
Caminho mais rápido e me aproximo deste ponto, único ponto que macula a areia branquíssima deste santuário. Penso em carregá-la até o fim de meu caminho e jogá-la fora. Mas observando melhor, vejo que a garrafa bem tampada e vedada contém algo dentro dela. Fico com medo de abrir, que tenho medo das coisas que desconheço, você sabe. Olho a garrafa de todos os ângulos. Limpo com a ponta da camiseta branca a maresia, a nata de mar que se formou ao redor dela para ver melhor seu conteúdo. Há algo que parece um papel lá dentro.
Resolvo então abrir e ter acesso a esse segredo dos mares.
Aberta, ela cospe o papel amassado e úmido. Um cheiro de mar e de conchas e de peixes elétricos e de lobos-marinhos e sereias invade meus sentidos. Um vento forte e sou possuída por um encantamento marinho. O vento cessa.
Abro a carta, na verdade, a desamasso.
Leio suas ternas e amadas palavras, surpresas-palavras-marinhas, e a água salgada que vertemos pelos olhos sobre aquele papel já molhado pelo mar vai borrando o doce do seu escrever.
Vou chegando às últimas linhas. O papel não resiste a tanto sal, água, intempéries, sol, sofrimento, distância, ventos rascantes. Ele se desintegra em minhas mãos. Funde-se aos grãos de areia branca.
Agora, exatamente agora, não tenho mais nada, exceto suas surpresas-palavras-marinhas, que me encantaram como feitiço do mar, e me fizeram sentir viva como uma sereia, desejada pelo pescador que ela escolheu para si.
Você disse em sua carta: "Eu diria que é muito, se se tem a esperança e o futuro como âncora dentro de nós". Eu tenho mais: eu tenho um oceano de combinações de palavras-marinhas, marinhas-surpresas, marinhas-palavras para brincar enquanto te espero nessas areias de sonho. A esperança, sim, será minha companheira.

Sua querida

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Sensualidade e desejo: a delicadeza do texto de Sandra Regina

Paliativo

Sufoco as marcas do tempo
Com as mesmas digitais
Que você deixou...
Me tatuando
(por dentro)

(Sandra Regina. O texto sentido. Editora Limiar, 2008)

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Carta encontrada numa garrafa

Querida,

Foi muito bom te rever, depois de tanto tempo.
É sempre muito bom estar na sua companhia...
Fiquei pensando no que te aflige, e o que me veio à mente é que você merece ser feliz, muito feliz. Por tudo que construiu no mundo: trabalhou duro para ter o conquistou, fez muitos amigos ao longo da vida, por que as coisas não poderiam dar certo agora>
Confie que tudo vai correr a seu favor, com toda força que tiver dentro si. (Isso não é religião, não é neurolinguística, não é autoajuda... É algo em que confio sempre quando tudo está desmoronando a meu redor: simplesmente é esperança.)
A esperança parece algo tênue e longínquo. Não é. Ela é nossa âncora no mundo. A gente atira, e a esperança vai parar longe às vezes, e demora pra se ter certeza de que ela vingou... Mas há de se ter fé. A esperança nunca nos deixa falando sozinhos.
A esperança é agora o único elo entre nós.
Receba esta garrafa, com esta carta, abra-a, leia e se lembre de mim.
É tudo o que temos um do outro neste momento: um oceano, uma garrafa, uma carta e as lembranças. É pouco, você diria.
Eu diria que é muito, se se tem a esperança e o futuro como âncora dentro de nós.

Seu querido

Quando é arte saber perder: Elizabeth Bishop

Uma Arte

A arte de perder não é nenhum mistério
tantas coisas contêm em si o acidente
de perdê-las, que perder não é nada sério.
Perca um pouco a cada dia. Aceite austero,
a chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Depois perca mais rápido, com mais critério:
lugares, nomes, a escala subseqüente
da viagem não feita. Nada disso é sério.
Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Perdi duas cidades lindas. Um império
que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.
Mesmo perder você ( a voz, o ar etéreo, que eu amo)
não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser um mistério
por muito que pareça (escreve) muito sério.

(Elizabeth Bishop. Tradução de Paulo Henriques Brito)

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Catulo: quando o amor se contradiz

"Odeio e amo. Por que assim faço, perguntarás, talvez. Não sei. Mas sinto que isso acontece, e me atormento." (Catulo)

A doçura em Clarice

“Há três coisas para as quais eu nasci e para as quais eu dou minha vida. Nasci para amar os outros, nasci para escrever, e nasci para criar meus filhos. O ‘amar os outros’ é tão vasto que inclui até perdão para mim mesma, com o que sobra. As três coisas são tão importantes que minha vida é curta para tanto. Tenho que me apressar, o tempo urge. Não posso perder um minuto do tempo que faz minha vida. Amar os outros é a única salvação individual que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca [...].”
(Clarice Lispector)

Como Clarice, nasci para amar os outros e para criar e amar minha filha. São duas coisas das quais não abro mão. Escrever, não ouso dizer isso depois de transcrever esse texto. Seria uma heresia dizer isso diante de uma autora poderosa como Clarice. Ouso apenas repetir seus destinos afetivos: nasci para como Clarice para amar os outros e minha filha. Nasci para ler seus textos e relê-los, e ler os textos de tantos outros autores. Depois de tanto lê-los, me pus a imitá-los... Mas nunca me esqueci que minha grande missão nesta vida é amar os outros e deixar isso claro de alguma forma. Agora, decidi que quero que sobre amor para mim. Quero que me amem na mesma medida, ou melhor, desmedidamente. Uma sagitariana gosta de jarros que entornam líquido, desmedidos, caudalosos... Quero que me amem, no mínimo, com o mesmo amor que eu destino ao mundo.

domingo, 18 de setembro de 2011

Nossa doce e trágica Florbela

Fanatismo Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida ⁄ Meus olhos andam cegos de te ver ! ⁄ Não és sequer a razão do meu viver, ⁄ Pois que tu és já toda a minha vida ! ⁄ Não vejo nada assim enlouquecida ... ⁄ Passo no mundo, meu Amor, a ler ⁄ No misterioso livro do teu ser ⁄ A mesma história tantas vezes lida⁄! "Tudo no mundo é frágil, tudo passa ..." ⁄ Quando me dizem isto, toda a graça ⁄ Duma boca divina fala em mim ! E, olhos postos em ti, digo de rastros: ⁄ "Ah ! Podem voar mundos, morrer astros, ⁄ Que tu és como Deus : Princípio e Fim ! ..." (Livro de Soror Saudade (1923) - Florbela Espanca - 1894-1930)

Ô triste, triste était mon âme

Ô triste, triste était mon âme⁄ A cause, à cause d'une femme. ⁄ Je ne me suis pas consolé⁄ Bien que mon coeur s'en soit allé, ⁄ Bien que mon coeur, bien que mon âme⁄ Eussent fui loin de cette femme. ⁄ Je ne me suis pas consolé, ⁄ Bien que mon coeur s'en soit allé. ⁄ Et mon coeur, mon coeur trop sensible⁄ Dit à mon âme : Est-il possible, ⁄ Est-il possible, - le fût-il, ⁄ Ce fier exil, ce triste exil ? ⁄ Mon âme dit à mon coeur : Sais-je,⁄ Moi-même, que nous veut ce piège⁄ D'être présents bien qu'exilés⁄ Encore que loin en allés ? ⁄ (Paul Verlaine - 1844-1896)

sábado, 17 de setembro de 2011

Confissão

É preciso viver intensamente todas as coisas, 'para além das raias'... uma sensação de mergulhar no que fazemos, no que sentimos. Mas se há algum arrependimento, digo: queria ter "trabalhado menos e complicado menos"...

A vida é sonho - caminhando pelas ruas de Buenos Aires

"A vida é sonho, e sonhos sonhos são." (Calderón de la Barca, in A vida é sonho) Ano passado tirei 10 dias de férias em outubro. Todos trabalhando ou na faculdade, tive que ir solteira para a Argentina. Confesso que foi uma viagem ótima. Estar apenas em nossa companhia, fazer exatamente o que queremos, no momento em que queremos é algo raro e prazeroso. Não que eu não goste de estar com as pessoas, não. Sou bem sociável e gosto de estar acompanhada. Sobretudo de pessoas próximas, que me conhecem bem, com quem já tenha estabelecido intimidade e com quem eu tenha afinidade. Gosto muito de viajar junto nessas condições. E para Buenos Aires, nada melhor do que fazer passeios juntos, ir jantar com as pessoas, tomar vinho, das boas risadas, ir a shows, ir dançar, essas coisas boas da vida. Mas nada impede que faça,os isso sozinhos, se estivermos de bem com a vida e prontos para mais uma aventura. Aproveitei minhas milhas, hotéis baratos e bem localizados para facilitar minhas saídas noturnas, pois não sou de ficar à noite fechada no quarto. Foram 6 dias em Buenos Aires e 4 dias em Mendoza: eu, meus desejos todos atendidos, minhas vontades femininas feitas na hora, lugares aos quais sempre tive vontade de ir, mas eu acabava cedendo minha vez aos outros. Não há melhor companhia do que nós. Aprendi isso mais uma vez nessa viagem. Fazia muito tempo que não viajava sozinha, muito tempo mesmo. Sempre havia a companhia da filhota (deliciosa sempre, Isadora) ou do companheiro. Fazia anos que não experimentava o doce estar.Como não conhecia Mendoza, aproveitei o que pude de seus vinhos e azeites, de suas ruas tranquilas, das minhas caminhadas em que podia pensar para onde estou indo e se quero ir. Houve um momento de insight: um casal, num passeio que fiz, me ensinou muito sobre futuro e aproveitar a vida hoje. Eles juntaram dinheiro para aproveitar e viajar depois que se aposentassem. Um ano antes disso, ela teve um grave AVC ainda jovem. Apesar disso eles estavam ali, caminhando devagar no passo dela, mas ele me dizia baixinho: "por que não passeamos mais antes... agora é tudo tão difícil..." Eu não respondi, não soube o que dizer. Achei então melhor não dizer nada. Eu pensei que apesar de trabalhar muito, tenho aproveitado muito minha vida. Pouco dinheiro, mas boas viagens, que é o que gosto de fazer. Trabalho vários meses num ritmo pesado, aí posso aproveitar um pouquinho a vida um ou dois meses do ano... pensei nisso quando conheci esse casal em Mendoza. Eu não posso me queixar. Apesar de faltar ainda muita coisa a fazer na vida, já fiz bastante do que gostaria, do que desejei ao longo do tempo. Isso é uma satisfação que não tem preço. Bem, voltando... não vou encher de detalhes aqui sobre a viagem, porque são muitos e seria tedioso para o leitor, mas o suprassumo voltando a Buenos Aires foi assistir à montagem A vida é sonho, de Calderón de la Barca. Desde adolescente, sempre quis ver no teatro esse texto e nunca tinha conseguido. A montagem que vi em Buenos Aires é jovem, o ator que dá vida ao personagem principal, belíssimo e perfeito na interpretação. O espetáculo todo, além do lindo texto, atualíssimo, é emocionante. Segismundo é o filho renegado do rei da Polônia. Ao nascer é trancafiado em uma torre, e assim vive preso, tendo apenas um único contato ao longo da vida. O texto narrará suas desventuras e aventuras, abordando a instantaneidade da vida, de como ela é uma ilusão, e sendo uma ilusão, um sonho, como tratá-la e chegar até seu fim, a morte. A vida, portanto, é sonho, é ilusão. Saí dali e fui caminhando pelas ruas cheias de pessoas e luzes do centro de Buenos Aires. A cidade plana, urbanizada, em que se pode caminhar por horas... Pensei na minha viagem e no que a minha vida é e poderia ser. Se a vida é sonho e ilusão, que acreditemos nesse sonho em que nos encontramos, e façamos dele nosso roteiro, o melhor possível, para que nossa vida não seja vã e não cheguemos à margem do rio com a sensação de vazio. Que o sonho seja o melhor sonho sonhado e construído por nós, uma ilusão da qual valha a pena se lembrar ao pingar uma moeda na boca do barqueiro. Que se cruze o rio com a sensação de ter deixado para trás um sonho vivido ao máximo, da melhor maneira, ter amado, ter-se apaixonado, ter "morrido de amor" (esta frase não é minha), ter querido muiiito minha filha adorada, cuidado e me dedicado a meus pais, embalado meus amigos, entornado os melhores vinhos (que meu bolso puder), pisado em todos os solos e culturas que eu puder conhecer, ler todos os livros que eu conseguir e trabalhar com prazer e dedicação espartana para conseguir tudo isso... Um sonho possível. É o que quero viver... O vento de outubro estava gelado e delicioso para quem gosta de frio e de caminhar em ruas planas e calçadas próprias. Adorei me sentir uma mulher livre no mundo, porém, com fios afetivos que me chamavam para uma geografia tropical. A brisa leve do frio portenho daquele dia ventilou os pensamentos e me lembrou que eu precisava ligar para a filhota, para meus pais, para o amado, para uma amiga com quem eu havia dividido um trabalho (já que eu estava em férias e não queria me matar de trabalhar no período de descanso)... Um sonho possível e à mão para quem tem um celular e a vontade de dizer alô, como eu tinha. -- Oi, filhota, tudo bom> Saudade, mamis te ama, viu> Vou entrar no cinema, liguei só pra dar sinal de vida...

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Safo de Lesbos, a minha preferida

De novo inquieta, num turbilhão,

Asa de vento: Amor

Me desalinha,

Doçura amarga, fera

Implacável...



(Tradução de Pedro Alvim. São Paulo: Ars Poética, 1992)

Com vocês: Paulo Leminski

"Atrasos do acaso,
Cuidado que não quero mais.
O que era pra vir
veio tarde
e esta tarde
não sabe do que o acaso é capaz."

(Paulo Leminski)

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Esse amor impossível

Ele pediu a um mensageiro que enviasse um bilhete certeiro: "Me encontre hoje, no fim da tarde. Quero te conhecer melhor."
Como isso aconteceu há muito tempo, o homem à moda antiga elogiou no bilhete a mulher em questão, tentando garantir o encontro antecipadamente. Elogiou sua cor branca que lembrava a neve, as formas arredondadas, a luz que ela irradiava quando estava presente entre outros. Tentou convencê-la de que aquele encontro seria definitivo para ambos. "Venha", ele disse no bilhete, "quero ser um com você".
Ao receber o papelzinho delicadamente dobrado, a alma feminina achou "fofo" aquele recado sutil. Entendia que os homens sabem exatamente onde "pegar" uma mulher pelas palavras, para dobrá-las e colocá-las nas costas, e levá-las consigo para onde quiserem... eles têm esse poder de dizer e nos "enganar" (mesmo que saibamos que estamos sendo enganadas e digamos "sim!"...). Ela leu o bilhete como se sorve lentamente um bom vinho, devagar, com prazer, querendo que não acabe.
Ela já tinha ouvido falar bastante daquela figura extremamemte masculina, cheia de vida, mas da qual ela nunca se aproximara. Um prazer percorreu a espinha: ela havia sido sua escolhida... Ela, e somente ela. Aquele bilhete deixara isso claro.
Ela então escreveu rapidamente uma resposta. Pediu a seu mensageiro que fosse rápido ao destino. "Encontro você no horário combinado. Aguardei muito por esse seu chamado." pronto. Nesta última frase estava lançado o anzol feminino. Ele havia escrito diversos elogios e palavras e derretimentos em forma de languidez para tentar conquistá-la; para a mulher, é necessário apenas deixar clara sua intenção: o anzol prenderá a presa. Ela o fez com sucesso: "Aguardei muito por esse seu chamado..." Ah! Mandou superbem, menina! Eu não teria essa ideia... Já mandei vários anzóis, mas este realmente foi o melhor que já vi.
Tanto foi o melhor anzol-resposta que, ao receber o bilhete das mãos do mensageiro, ele tremeu ao imaginar qual poderia ser o desfecho.
A noite prometia.
Ele não conseguiu trabalhar direito aquele dia, e ela não conseguiu se preparar direito para o que faria à noite. Uma escavadeira corroía o estômago de ambos, impossível ficar sentado por mais de 5 minutos. O dia permanecera nublado e a noite seria escura naquela dia. Uma dúvida: será que ela viria; será que ele viria...
À distância, ele já se apaixonara por ela, vendo sua graça passar. Ela já ouvira falar muito dele, e também à distância, nutria algo platônico, que esperava um dia realizar. Bem, chegara o esperado dia. O grande dia de ambos.
A escavadeira fizera grandes estragos no estômago de ambos, como seria possível disfarçar isso no momento do encontro> O lábio dela tremia de ansiedade e a boca estava seca. O estômago dava umas voltas estranhas... Ele, como todo exemplar masculino, tinha as entranhas corroídas, como se ácido tivesse sido jogado ali, mas tentava manter-se aparentemente calmo. E de certa forma conseguia, usando sua racionalidade Y.
Faltavam trinta minutos para o encontro. Eles foram se encaminhando para o lugar combinado, que só ambos sabiam.
Foram chegando, e começaram a ver um ao outro ao longe, um sorriso foi se esboçando: "Ela é mais linda ainda de perto"; "Como eu não havia percebido melhor ele antes> Gato!"... Foram se aproximando, e o coração, aquele tambor interno, nosso termômetro da paixão e dos sentimentos, foi marcando cada vez mais rápido aquela frase "É ela", "É ele", que trazemos dentro de nós e sinaliza o objeto do desejo.
Quando estavam bem próximos um do outro, sorriram, ela nervosa, ele, triunfante em sua masculinidade. Ela estendeu as mãos, generosa, como qualquer mulher. Ele foi trazê-las para junto de si, mas uma força aterradora puxou-o para trás.
Ela gritou. Tentou correr em sua direção, mas não o alcançou. Cada vez mais rapidamente ele era alçado para trás e para trás, para longe dela. Ele ficou mudo, apenas olhando para ela e ainda com as mãos naquela gesto de trazê-la para perto de seu corpo.
Ela então parou de correr. De repente, tudo ficou escuro. E ele se tornou apenas um ponto de luz na escuridão.
Nesse dia, Sol e Lua descobriram a impossibilidade de seu amor.

(Sandra Brazil. Acho que depois de ver tantos ocasos aqui da janela, só poderia surgir uma história assim.)

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Ainda as Odes de Ricardo Reis

A flor que és, não a que dás, eu quero,
Porque me negas o que te não peço.
Tempo há para negares
Depois de teres dado.
Flor sê-me flor!
Se te colher avaro
A mão da infausta esfinge,
tu perene
Sombra errarás absurda,
Buscando o que não deste.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

A vida é sonho

"A VIDA É SONHO É certo; então reprimamos esta fera condição, esta fúria, esta ambição, pois pode ser que sonhemos; e o faremos, pois estamos em mundo tão singular que o viver é só sonhar e a vida ao fim nos imponha que o homem que vive, sonha o que é, até despertar. Sonha o rei que é rei, e segue com esse engano mandando, resolvendo e governando. E os aplausos que recebe, Vazios, no vento escreve; e em cinzas a sua sorte a morte talha de um corte. E há quem queira reinar vendo que há de despertar no negro sonho da morte? Sonha o rico sua riqueza que trabalhos lhe oferece; sonha o pobre que padece sua miséria e pobreza; sonha o que o triunfo preza, sonha o que luta e pretende, sonha o que agrava e ofende e no mundo, em conclusão, todos sonham o que são, no entanto ninguém entende. Eu sonho que estou aqui de correntes carregado e sonhei que em outro estado mais lisonjeiro me vi. Que é a vida? Um frenesi. Que é a vida? Uma ilusão, uma sombra, uma ficção; o maior bem é tristonho, porque toda a vida é sonho e os sonhos, sonhos são." (Trecho de Pedro Calderón de la Barca -1600-1681-, in La vida es sueño)* *Encontrei esta tradução no blogue: http://paideiacomletrinhas.wordpress.com/2011/05/31/a-vida-e-sonho-pedro-calderon-de-la-barca. Não há menção a quem o traduziu.)

Rota 99

"A Orgia e a Morte são duas jovens graciosas,
Fartas de beijos e de frêmito incontido, (...)"
(Charles Baudelaire, "As duas boas irmãs", in As flores do mal)

Rota 99 entrou com tudo num fim de tarde - águas de março. Um calor úmido e insuportável fazia crescer o tiquetaque do desejo rumo noroeste. Cristais tilintavam, paredes estremeciam e raios atingiam em cheio a terra molhada.
Tambores soavam numa selva desconhecida, anunciando. A pedra, o poço, o transe, uma civilização perdida; sacrifício humano jorrando sangue sagrado e profano.
Sedução, e a razão, entorpecida, o corpo murmura: sim, sim, sim.
Num tempo irreversível. Controlado, personalizado, estudado, ao alcance da mão, medo da surpresa e da dor. Medo de se achar fora do papel milimetrado, e surpreender-se: tigre, em círculos, acuando a presa, devorando-a, despedaçando-a.
Perder o controle, profanar o obelisco quente e latejante e tornar-se vítima sagrada - toda à mostra, os músculos em prontidão, a carne viva, fluidos se interpenetrando, escambos na paixão instantânea.
Insinuar, burlar, apostar na surpresa e no desconhecido. Um tempo sem volta. Mas ali, um rocambole negro e futuro, desenrolando-se rapidamente, alta velocidade, rota 99.
Os faróis cegam e a vontade acelerada do fogo e do asfalto: febre superando medo, conduzindo rápido ao destino: rota 99.
"Let's get lost."
Ponto de encontro sinalizando, o ápice viria, era certo. O rosto mediterrâneo, os olhos sorrindo, assentindo. Ao tocar o perfume, pensei: vou me perder. As horas futuras, intermináveis, selaram-se ali, na escuridão da rota 99. Vênus descontrolando as marés. O tambor dentro de mim - tuntum, tuntum. Esta noite ou nunca.
O selo supremo. Nada mais importa. A seta indica um porto feliz. Os tambores rugindo, o tigre antecipando o desencarne. Sacrifício. O corpo estanca e escorrega fundo. Peço, ensandecida, e um vulcão agiliza a poção sagrada do amor. Uma, duas, outras vezes. Cansaço, alívio e prazer percorrem os sentidos.
A morte instantânea anuncia: renovado, o corpo em sacrifício percorrerá o caminho de volta na rota 99.
Uma civilização se resgata. O tigre desliza saciado. Os tambores estão silenciosos. Nenhum som na floresta.
Nem é preciso perdão. O melhor ainda virá.

(Este meu texto foi publicado na revista eletrônica Ocaixote, n. 20: http://www.ocaixote.com.br/caixote20/contos20_SandraB.htm. Agradeço por isso a Xico Santos, que encaminhou a trilogia - da qual este texto faz parte -, e a Lizete Mercadante Machado, editora do caixote. Beijo aos dois bonitos...)

domingo, 11 de setembro de 2011

O Albatroz

Às vezes, por prazer, os homens da equipagem
Pegam um albatroz, imensa ave dos mares,
Que acompanha, indolente parceiro de viagem,
O navio a singrar por glaucos patamares.

Tão logo o estendem sobre as tábuas do convés,
O monarca do azul, canhestro e envergonhado,
Deixa pender, qual par de remos junto aos pés,
As asas em que fulge um branco imaculado.

Antes tão belo, como é feio na desgraça
Esse viajante agora flácido e acanhado!
Um, com o cachimbo, lhe enche o bico de fumaça,
Outro, a coxear, imita o enfermo outrora alado!

O Poeta se compara ao príncipe da altura
Que enfrenta os vendavais e ri da seta no ar;
Exilado no chão, em meio à turba obscura,
As asas de gigante impedem-no de andar.

(Charles Baudelaire, Tradução de Ivan Junqueira)

sábado, 10 de setembro de 2011

Entre as minhas favoritas, também está Ana Cristina Cesar

Tenho uma folha branca
e limpa à minha espera:
mudo convite

tenho uma cama branca
e limpa à minha espera:
mudo convite

tenho uma vida branca
e limpa à minha espera:
mudo convite


(Ana Cristina cesar - 1952-1983)

Na esteira do Restaurant Week

Ano passado postei em maio Educação, em que falava, entre outras, coisas do Restaurant Week.
Não foi uma boa experiência na verdade. A comida não estava nada boa, apesar do bom restaurante. O serviço praticamente nos empurrou mesa afora para dar vazão ao público que esperava lá fora, o público de dentro era voraz e barulhento. Acabei parando por ali.
Neste ano, foi tudo diferente.
Fui ao La Marie, um restaurante supergostoso em Pinheiros que já conhecia. Tinha ido há algum tempo com uma amiga, e fomos tão acarinhadas pelo bom tratamento do dono, ganhamos um drinque delicioso, fomos perguntadas sobre nossa entrada, nosso prato, nosso café... Resolvi voltar. E, ontem, era dia de Restaurant Week.
Chegando lá, havia lugar. Milacro! Duas mesas vagas dentro. E três mesas ainda estavam solitárias fora. Nem acreditei!
Pensei: bem, pode ser um mico. de repente o serviço será superfast se eu pedir o menu do Week.
Olhando o cardápio, eu ia pedir uma salada, fora do menu do Restaurant Week, porque é um costume meu comer saladas à noite. Mas... quando vi o menu do prato quente, desisti de minha doce e frugal salada. Lagosta mediterrânea...
Uma caminha de purê de batatas, coberta por legumes delicados, tudo isso coroado por nossa áurea lagosta aos pedaços. Fazia muitos anos que não comia lagosta. Resolvi interromper esse jejum.
A entrada: ostras com um creme delicioso de espinafre gratinado servido nas conchas... Não sou fã de ostras, portanto, apenas provei um pedaço de uma delas e ofereci as outras. Ham! Comeram rapidamente minha oferta...
Pedi um vinho italiano, uma taça apenas pra acompanhar esse momento tão bom do dia: depois de trabalhar muito, é muito poder se sentar num restaurante, conversar, tomar uma taça de vinho ou qualquer outro etílico, comer algo que caia bem (não precisa ser grande quantidade, que nem gosto de comer muito). Mas estar num bar ou num restaurante numa sexta à noite, ver as pessoas com aquela cara boa de "enfim é sexta" faz muito bem ao coração.
Há conhecidos no restaurante. Uma conversa rápida se trava, e surge o tema das Intermédicas, torneio de medicina anual. Relembro que participei, que estive naqueles alojamentos terríveis e comi daquela comida bem terrível também. Aí me perguntam: você é médica? Não, eu fiz apenas um ano de medicina. Hoje faço outra coisa... Mas, tive que adverti-los de que não participei de nenhuma prova atlética, pois não tenho aptidão para esportes. Fui convidada para ir como torcida! Eu devia ser muito animada aos 22 anos...
Bem, voltando ao La Marie, o serviço foi feito com calma. Não fui apressada a sair da mesa como no ano passado no outro restaurante, nem o público gritou improprérios como no Itaim Bibi...
O vinho recomendado estava delicioso, tomei devagar, para apreciar cada nota. Eu não entendo nadinha de vinho, mas que senti um fundinho de "apimentado", senti... que me perdoem os "connaisseurs" essa minha linguagem tosca.
Terminado o vinho com calma, a conversa se estendeu solta, gargalhadas e casos foram contados. Tivemos que lembrar o garçom de nossa sobremesa, que fazia parte do menu do Week. Nesse ponto, já havia uma ou duas mesas vazias lá dentro. Ele trouxe. Uma sobremesa de coco deliciosa, numa pequena taça (sim, porque coisas gostosas têm que vir em pequenas doses mesmo). Pedi meu espresso curto, que é minha tradição.
Ele veio na medida.
Portanto, nada como o tempo para desfazer impressões ruins. Neste caso, do Restaurant Week do ano passado...
Voltei no caminho para casa vendo a Lua que estava linda. Pensei: como é bom não dirigir e ser passageiro às vezes, poder ser observador.
Começou a chuviscar e o efeito do vinho com todo esse néctar e ambrosia naquelas mais de duas horas no La Marie me fazem sentir uma Vênus. Posso qualquer coisa, como Vênus, como Psiquê, como qualquer mulher...

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Esconde-esconde lunar

Todos sabem
fingindo que não.
A lua vai alta.
Homem e mulher.
Lá se foram os sentidos.
Inexplicável.

Corro
e ela invade
com a luz opala.
Ele acelera.
Corro mais um pouquinho,
charme feminino.
Olho para o alto.
A lua
redonda
pisca,
olhos
e sorrisinho
de pin-up girl.

Um leve farfalhar de grama e arbustos --

dona Lua
e seus caprichos.
Esse eterno
jogo de esconde-esconde
em crateras
lunares.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Quando o trabalho é prazer

Muita gente sabe que adoro a culinária japonesa, aquela arte milenar de decorar o prato com montinhos pequenos de vegetais cortados pequeníssimos, ervas raladas e aromáticas ao lado perfumando o prato, um peixe cortado de um modo diferente e grelhado de uma forma ou cru no meio disso tudo.
Meu ex-marido gostava muito do Suntory, e íamos às vezes lá quando sobrava um extra. Mas era algo raro, só em dias de festa ou comemoração.
Quando namorávamos, nosso namoro-relâmpago, logo que começamos ele me levou lá (para me impressionar, eu acho -- deve ter gastado grande parte de seu salário, tadinho... na época), e nunca mais se cansou de contar a história de que me assustei quando me ofereceram a toalha quentíssima para higienizar as mãos.
Bem, eu fui gostando cada vez mais da culinária japonesa. Infelizmente isso não ocorre com a chinesa.
Ainda casada, fizemos uma viagem ao Japão, e lá pude realmente conhecer de perto muitos pratos que não conheceria aqui. Na casa das pessoas que conheci, elas cozinhavam aqueles pratos típicos, que aprenderam com a família. Pasteizinhos recheados de alho, tempuras dos mais variados peixes e legumes e camarões. Tudo muito aromático e bonito, porções pequenas, tudo arranjado delicadamente nos pratos. As sopas então, aquele gosto forte de peixe seco em flocos, eu gosto. Os bentôs (uma espécie de "marmita, uma caixinha de madeira, com compartimentos, e alguns tipo de comida nela) que se compram no metrô ou na estação de trem, e pode-se se comer no vagão sem nenhum problema.
Lembro de um shopping em Tóquio, todo subeterrâneo, eram muitos os andares. Na área da gastronomia, cada andar era dedicado a um tipo de comida. Por exemplo, me lembro bem: um andar inteiro desse shopping era todo devotado a sobremesas. Mas, caros leitores, não eram meras sobremesas, meros doces. Imaginem os doces mais bonitos, mais bem ornados, decorados. Os chocolates mais deliciosos em forma de um laço, as tortinhas com as frutas mais delicadas em cascata. Uma parte era destinada aos doces típicos orientais, mas a maior parte da área era preenchida por confeitaria francesa. Eu havia estudado um ano antes em Paris, e tudo que havia visto lá nas vitrines daquelas patisseries maravilhosas, estava vendo agora ali, naquele andar bem abaixo da terra, que me causava certo medo por causa dos terremotos, os dishins que eles tanto mencionam, mas que é um lugar de sonho para quem gosta de açúcar.
No Japão provei diversos tipos de saquê. Mas claro que sei que não conheci a mínima parte do que a culinária japonesa pode oferecer. Mas saboreei tudo que pude, sorvendo cada detalhe. Tanto que, ao voltar do Japão, depois de um mês, eu tinha cerca de 5 quilos a mais na balança.
Ao longo dos anos, volta e meia vou a um restaurante japonês, mas é totalmente diferente do que experimentei por lá, claro...
Recentemente, nos últimos anos, não tenho frequentado restaurantes japoneses, por razões que a própria razão desconhece... mas penso que está no momento de voltar a exercer o doce prazer da comida japonesa.
Sincronicamente, eis que me surge às mãos um trabalho em um livro de culinária japonesa. São receitas do proprietário-chef de um restaurante descolado que, de tão estrelado, abriu algumas filiais ao redor do mundo, mas poucas, porque o olho do dono está em tudo nessa empreitada, inclusive nesse livro. As reservas são muito disputadas e nada menos do que Robert de Niro faz parte da lenda do império que se ergueu ao redor da alta culinária empreendida nesse restaurante.
Trabalhar em algo assim é prazer... Primeiro, concluí ao longo do trabalho que realmente sou quase vegetariana. Só me apetecem as saladas, os grelhados de legumes e de alguns peixes (só alguns, sobretudos os peixes de carne branca), os salteados, os assados que levam muitos legumes. Nada de frituras ou carne de porco ou carnes vermelhas. Estou vegetariana mesmo.
As receitas parecem deliciosas e, para quem gosta e está acostumado a cozinhar digamos "alta" culinária não será difícil seguir os passos descritos com simplicidade e praticidade pelo mestre. Para mim, que sou mais leiga em cozinha, talvez os peixes tenham que vir cortados para facilitar, por exemplo. Mas preparar a receita não seria um problema.
Mas o que mais me chamou a atenção foi o capítulo destinado aos coquetéis -- os drinks! Sim. Eu me senti numa banheira de espuma, e como se um garçom fosse me servindo cada um dos coquetéis descritos ali. Parecem tão originais, tão maravilhosos, tão cheios de propriedade e deliciosos que eu que não sou adepta de drinks fiquei com água na boca para provar cada um deles...
Não vou adiantar aqui quais são eles, pois o livro ainda está em produção, mas sem dúvida a editora deverá colocar alguns no site para o leitores mais apressados.... Assim que for lançado o livro, indicarei aqui no blogue para que vocês possam ser Tom Cruise por um dia e fazer seu Cock-tail. Adoro esta palavra em inglês...
As pessoas às vezes me perguntam se não me canso de trabalhar nessa área, a de livros. Como eu poderia?... Um dia estou entre drinques e coquetéis, disputando reservas em um restaurante japonês descolado. No outro estou em uma cidade do mundo, trabalhando em um guia de viagem. Um dia, fone nos ouvidos, sigo as legendas de um vídeo histórico sobre a construção de Brasília: minha missão era acertar as legendas escritas de acordo com a narração. Foi incrível! Aquela voz dos narradores dos anos 60 nos ouvidos, aquela linguagem que me lembrou a infância. Certa vez, me vi entre dois tomos de Os miseráveis, de Victor Hugo... O livro de Godard. Fico feliz de pensar que participei da publicação dos manuscritos de Ana Cristina Cesar. Em outro momento, posso estar trabalhando em um livro infantil, ou um livro didático qualquer. Depois, pode vir um crème de la crème: uma revista de arte e literatura, por exemplo (é raro, mas acontece). E nos píncaros, quando tudo dá certo, posso estar perdida num livro de fotos, de arquitetura, ou num livro de arte, num livro de aquarelas, num livro de literatura, ou ainda num guia de alguma exposição ou de uma mostra de cinema...
Posso me queixar do meu trabalho?
Quando se tem prazer e se ganha para isso, posso dizer que isso é tirar a sorte grande. Como diria Moreira da Silva: "Etelvina, acertei no milhar". E lembrar Moreira da Silva me fez lembrar a Lapa, que me fez lembrar o Rio... e suas praias.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Um outro olhar da Paulista

É plena segunda-feira, mas por ter trabalhado no fim de semana, meu dou o luxo de "me montar" e ir a um compromisso na avenida-corredor-financeiro do nosso país.
Mas, para nós, paulistanos, a Paulista tem vários significados além de artéria econômica: cinema, espaços culturais, cafés, restaurantes, tudo em meio àquelas caixas de concreto ornadas de vidros espelhados, que esquentam muito no calor e esfriam muito no inverno.
Num dia lindo de sol e céu azul como hoje, a Paulista é uma praia para nós, desprovidos de lugares abertos para caminhar, exceto pelos parques e alguns raros outros. (É por isso que escrevo tanto sobre o Rio de Janeiro, e gosto tanto dessa cidade.)
Pois me encaminhei a meu destino, em plena segunda-feira. Como me esperavam, não quis me atrasar. Fiz um caminho mais curto e saí mais cedo, sabia que o trânsito poderia estar caótico.
Pois que cheguei na hora, até um pouco adiantada, então resolvi dar uma caminhada por minha velha conhecida. Estacionei e fui caminhando e vendo e observando as pessoas, o trânsito, o comportamento, pois eu já tinha entregado meu trabalho, estava livre e tinha tempo para isso.
As pessoas andam num passo acelerado, quase correm, e não se olham, sequer quando param para atravessar a rua e esperar o farol abrir para elas. Estão com o rosto tenso, parecem preocupadas com algo que ainda falta fazer e não vai dar tempo. (Deve ser esse meu rosto quando saio para almoçar todos os dias...) As mulheres atam a mão e o braço fortemente à bolsa e vez por outra espiam à direita e à esquerda, olhando para trás, imagino que para ver se há alguém suspeito, querendo roubar seus pertences ou sua bolsa. Uma tensão constante no ar.
Os homens são mais relaxados. (Acho que é porque não carregam bolsas e seus milhões de pertences internos...)
Os idosos são um caso à parte. Eles são os únicos a caminhar devagar, sem pressa, a olhar ao redor com calma, a observar. Num tempo diferente dos adultos, crianças e jovens, sim, porque as crianças hoje são chamadas à roda-viva do estresse também, com seus afazeres e agenda diária que os pais lhes impõem.
Uma moça passa com um cachorrinho. Ela anda apressada, o cachorrinho está passeando (ou sendo passeado, não sei...), mas tem que correr, porque ela tem muita pressa. Ele não consegue acompanhar o passo da moça, então acaba sendo arrastado pela coleira... Passeio micado para ele e para ela, imagino.
Vejo uma mãe passar com um carrinho de bebê. Ela vai para uma sombra e tira de uma bolsa uma mamadeira com água. Num ritmo que só mães em licença-maternidade têm. Degavar, ela pega o bebê no colo, dá a água sem pressa, limpa a boquinha com cuidado com uma fralda limpíssima. Volta tudo para a bolsa. Volta o bebê para o carrinho. Em velocidade 0,5, volta a seu passeio com seu "milagre da natureza".
Isso me fez lembrar de quando minha filha Isadora nasceu. Eu fazia a mesma coisa. Até ela fazer uns dois anos, apesar de meus inúmeros afazeres de faculdade, trabalhos freelancer, eu me permitia dar dois passeios com ela no dia (às vezes era possível apenas um, paciência). Quando ela começou a caminhar, lá íamos nós, ela sempre levava uma bonequinha, e íamos conversando a linguagem dos bebês... Confesso que ter visto essa cena me trouxe uma saudade imensa da minha filha nessa idade tenra e deliciosa das crianças, quando elas são absolutamente próximas de nós, as mães, tão próximas que nós não sabemos onde terminamos e onde elas começam, se um dia nos desgrudaremos e seremos nós mesmas de novo... hoje eu sei.
Bom, a mamãe se foi. Olho o relógio do celular! Toca minha campainha interna: Ben! Estou atrasada! Esse é meu normal... Portanto, não causarei surpresa nem espanto nem raiva. Mas são só 5 minutos.
Corro até meu compromisso. Ufa! Cheguei apenas 8 minutos atrasada.
Mas acabo de pensar que nesse trajeto, eu acabei me tornando exatamente as pessoas que vinha observando: corri, não olhei ninguém, sequer no farol, não olhei o entorno. Eu me tornei o autômato que vinha descrevendo.
Cheguei à seguinte conclusão: as pessoas, como eu, estão sempre atrasadas... Talvez seja isso. (Prefiro acreditar nisso.)
Bem, compromisso finito, o dia continua lindo, caminho um tanto para pegar o carro. Paro num café, está lotado, as mesas são na calçada. As pessoas parecem felizes com esse calor que surgiu.
E a Paulista parece mais uma praia, com gente alegre, amigos tomando chopp, cerveja, bebidas geladas, todos tirando a gravata, o paletó. As mulheres de vestido.
Sem dúvida, é impossível passar incólume a essa imagem da Paulista: cheia de pessoas, vestidos, sandálias, cores, sorrisos, ela deixa de ser o corredor de concreto e dinheiro a que estamos acostumados.



sábado, 3 de setembro de 2011

Encontro das águas

Pôr de sol dourado atrás das árvores do parque. E ainda é todo nosso...
Não importa onde eu esteja, volto para apreciar o dia se despedindo e a noite chegar com seus pedidos.
É como ver o encontro das águas entre o rio Solimões e o Negro. Espetáculo da natureza. Você não sabe onde um começa e onde o outro termina, não consegue estabelecer limites.
Assim é o encontro rápido do dia com a noite. Não é possível dizer aqui terminou o dia, aqui chegou a noite. É algo suave, um encontro delicado e tênue, um se confundindo com o outro. Sem ao menos perceber, já se foi o dia, e a noite escura tomou posse e domínio do céu.
Como no encontro das águas, esse encontro no ocaso é belíssimo e misterioso, como as lendas da floresta, do Boitatá, da Iara e da Bartira. Só ouvindo e ficando em silêncio. E admirando com os olhos, que coisa mais bonita, não há.

Sobre cristais e porcelanas II

Quando eu postei Sobre cristais e porcelanas não pensei na possibilidade de um dia ter que atualizá-lo, como nos filmes de Hollywood. Duro de matar 1, Duro de matar 2, 3, 4 etc. Mas de um ano para cá, a minha cristaleira ganhou alguns presentes e eu tive que apertar as xícaras da minha mãe e da minha avó e da minha sogra e da minha ex-cunhada e dos amigos e os presentes de minha filha e de meu pai para poder dar espaço a esses mimos novos.
Não foram muitos, mas o suficente para me deixar muito feliz.
Em Lisboa, já contei aqui no blogue na postagem Alfama, ginginha e saudade da Maria que tive uma sinusite do cão e aproveitei mal a viagem, porque a febre me consumia. Talvez por isso, num dia em que resolvi ficar no hotel durante a manhã para não sair na chuva e piorar meu estado, depois do almoço me chegou um pacotinho às mãos.
Fiquei pensando: nossa, um presentinho... até minha febre deu uma trégua, e fui abrindo as várias folhas de papel pardo e depois o plástico bolha. Os portugueses fazem uns embrulhos de presente trash, creiam! Quando enfim cheguei ao miolo do pacote dei de cara com uma xícara de café pintada a mão, de Alcobaça. Muito bonita. Fundo pérola, motivos pintados em azul, amarelo e vermelho. Aí perguntei: "por que este presentinho. Já ganhei tantos durante esta viagem". "Ah, você está tão triste com essa febre, tão sem vontade de sair, que resolvi fazer uma surpresa". E surtiu efeito. À noite, eu estava melhor, e pude sair e me divertir numa cervejaria antiga de Lisboa. Alguns presentes têm esse efeito em nós. Cheios de intenção, eles às vezes nos curam.
Noutra vez, já no último dia da viagem, em frente de uma loja que vendia aquelas porcelanas chiques de Limoges (que confesso, acho lindas, mas só tenho uma, que comprei na praça Benedito Calixto, pois são muito caras), ouvi assim: "vamos entrar. Só pra ver". Entrei.
Tinha coisas lindas, mas a preços indizíveis. Eu disse: "esta loja está abusando. Tudo muito caro. Vamos".
Mas, num canto da loja havia um mostrador com suportes de vela com uma cúpula, como se fosse um superminiabajur. A base de porcelana, a cúpula de uma porcelana finíssina, como se fosse uma casquinha de ovo. Surpreendentemente, naquele mostrador, os preços estavam de acordo, e eu ouvi: "Escolha um. Quero dar um desses de presente pra você".
Eu dei um passo para trás, apesar de o preço ser módico e comprável, respondi que não precisava, que talvez houvesse outro lugar com preços mais acessíveis para se comprar um presente. Insistente: "Escolha, se não, eu vou escolher, e pode não ser do seu gosto ou não combinar com sua sala...".
Vi de novo o preço (não sei ser presenteada, fico sem graça, sobretudo se vejo o preço do presente, mesmo que seja módico, como era o caso), achei que cabia no bolso, inclusive no meu, então, escolhi: uma base de fundo branco com motivos laranja e azul aquarelado de motivos orientais. A pequena cúpula em altos e baixos-relevos mostra cenas de personagens orientais em um jardim cheio de bancos, juncos, flores, cerejeiras. O conjunto todo cabe entre minhas duas mãos, tão delicado é. Você põe a vela sobre a porcelana, acende e compõe com a cúpula. Pronto, você tem um jardim oriental iluminado em sua mesa de centro ou de jantar. É uma pecinha muito bonita.
Recentemente, ganhei um copinho de tomar tequila, motivos turísticos de San Francisco: Golden gate, bondinho etc., em cores superalegres.
Abri espaço na cristaleira para mais estas 3 peças.
Elas ficam ali, silenciosas, coloridas, como as tantas outras que contam detalhes: a xícara de Alcobaça que promoveu uma espécie de cura, a porcelana rara que queria ser minha a todo custo (quem imaginaria). Essas pequenas peças, mágicas, cheias de propriedade, delicadas que compõem minha história no mundo. A história de uma Sandra que poucas pessoas conhecem.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Surpresas clicam em meu blogue

Eu sou meio "manezinha" para aparatos cibernéticos, eletrônicos e afins... Tenho vergonha de admitir, mas resisto um pouco para me atualizar. Por exemplo, gosto de Cds ainda. Esse negócio De pôr 15 mil músicas numa engenhoquinha que cabe na minha mão me tira a vontade de ouvir música, acreditem! Eu teria preguiça de procurar entre as 15 mil... tenho que procurar nos Cds.
Então, tendo que trocar meu aparelho de som, vou trocar por um que tenha saída paras as engenhoquinhas, que minha filha usará, e para Cds, que coleciono aos montes.
(Aliás, enquanto escrevo, o céu está lindo. O pôr de sol está bem amarelo e está dizendo adeus pra mim aqui... Podem perceber que meu vizinho ainda não deu início a subir seu concreto e tapar minha visão deslumbrante e diária do céu da cidade... Todos os dias, apesar da poluição, me despeço do dia aqui do escritório e dou entrada na noite. É uma sensação de ter as rédeas do seu tempo e da sua janela.)
Bem, para se ter uma ideia, estou tentanto aprender como colocar imagens no blogue para tornar mais bonito e mais interessante o visual e o contexto, mas tento sozinha e vou no erro e acerto. Mané total. Um dia, vocês verão uma imagenzinha aí.
Também não sou o tipo de pessoa que fica fuçando para tentar conhecer, então, demora mais tempo para eu conhecer as ferramentas. Portanto, exceto pelas coisas do meu trabalho, para as quais tento me manter atualizada, porque aí é necessário, o restante é assim, lento como um realejo.
(Bom, agora o dourado da tarde despejou sua cor e o escritório está todo iluminado. É uma sensação de ter o sol aqui dentro, por alguns poucos instantes, porque logo ele desaparecerá.)
Bem, sei que há alguns dias, fui ver as estatísticas do blogue e descobri (Eureca!) que meu blogue tem sido acessado de outros países. Claro que sei que pode ter sido uma busca que erroneamente caiu no meu site, mas, em alguns casos, pelo número, pode ser que não. Mas o que quero dizer é que o interessante é que foi necessário eu entrar nessas estatísticas para ter a curiosidade de descobrir onde fica Belize, por exemplo, do qual houve 17 acessos... País que foi chamado também de Honduras Britânicas e fica ao norte do México! Dá-lhe geografia...
Agora a grande surpresa ficou por conta de um acesso estranhíssimo, que deve ter-se enganado achando que o meu era um site de coisas eróticas, sim, porque muitas vezes alguns sites que mencionam Safo e Lesbos trazem prazeres mundanos... Bem, o acesso veio da Ucrânia. Mas foi único. Provavelmente algum desavisado procurando alguma Safo mundana imagino... Deve ter ficado desapontado ao cair aqui!
Outros acessos vieram dos estados Unidos, Alemanha, Holanda, da Espanha e Canadá e, pasmem, Índia e Irã, em número significativo. Mas claro que o número mais significativo de todos é brasileiro e há bons acessos de Portugal também, talvez por conta de um texto sobre Alfama e por eu ter enviado o link a alguns cidadãos da terra.
Portanto, essa minha alegriazinha de sexta-feira com o acesso dos portugas se uniu a este céu avermelhado que vai anoitecendo aqui na minha janela enquanto vou concluindo este texto.
Em alguns meses, quando o prédio chiquérrimo vizinho subir, vão me tirar esta vista linda, mas jamais vão arrancar a lembrança desta sexta, deste pôr de sol, desta surpresa de geografias estrangeiras clicando em meu blogue.

Odes de Ricardo Reis

FERNANDO
PESSOA
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Odes de
Ricardo Reis

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Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.

Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.

Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.


Ricardo Reis, 1-7-1916



O sorriso e a ginga de Nelson Correa da Silva

Numa das vezes que fui a Santa Tereza de bondinho, estava na fila da Babel, alegre e conversadeira, rindo e gargalhando, e ouvi alguém gritar numa voz alegre, típica dos cariocas, em meio àquele calor violento que exaure, naquele sotaque cheio de chiados bom de se ouvir por algum tempo:
-- Cabe mais dois! Vamos lá! Corre... -- era o condutor (descobri que é assim que se diz) do bondinho.
Corremos e subimos no estribo. Perguntamos: "Mas onde?!" O bonde estava cheíssimo, lotado nos bancos e nos estribos. O condutor então disse "fiquem aqui, pertinho de mim, os dois", e sorriu sedutor, meio malicioso e com ginga, mas um sorriso de rosto cansado, pronto pra tocar mais um trajeto do comboio.
Como estava muito apertado, eu acabei ficando em pé, próxima da janela, mas meio na frente de quem estava sentado à esquerda. Antes de sair, ele me pediu: "Senhora, vamos ficar bem coladinho à esquerda pra minhas amigas aqui sentadas não perderem a vista..." E sorriu. O bonde aberto, correndo no alto, meu medo de altura, meu medo daquele bondinho que eu sabia não ser lá uma brastemp de manutenção (mas não tinha ideia de que o buraco ia mais embaixo)... Mas ele pediu com tanto jeito e sorrisos que, quando vi, estava no alto dos arcos, colada no vão aberto do bondinho, agarrada sei lá em quê, vendo seu rosto sério, o sorriso desfeito naquele momento, e ele ali, nos conduzindo naquele trajeto cartão-postal, mas perigoso.
Fechei os olhos, coisa de gente medrosa. Mas ouvi: "San-San, olha nosso bar lá embaixo", e abri os olhos, mas só um pouquinho. Vi o sórdido cheio de azulejos ao redor, e ri, um riso nervoso, mas gostei, adrenalina.
O nosso alegre e responsável condutor voltou a sorrir subindo as ruas do bairro. Simpático, as pessoas faziam perguntas, ele respondia, mas sempre olhos cravados para a frente, mãos firmes no timão daquela engenhoca -- que ele sabia que tinha uma bomba-relógio nas mãos, nós que não sabíamos direito disso. Engraçado, ao longo do trajeto dos arcos, ele ficou tenso, e só silêncio. Só voltou à ginga e a responder aos turistas nas paradas e aqui e ali ao longo do bairro nos trajetos mais lentos, em que o bonde talvez desse mais segurança, não sei, estou supondo.
A cada descida nas paradas, tamanha simpatia tinha sua retribuição com sorrisos, adeus, ou "quero descer ao centro do Rio com você!", obrigada!, foi ótimo! etc. Ele parecia um pouco aliviado e recompensado pelos sorrisos e despedidas cheias de carinho e agradecimentos. Merecidos: por saber lidar conosco, os turistas, e por ter nos levado até ali naquele trajeto certamente cheio de perigos que um bonde deve ter.
Hoje de manhã, vendo com mais atenção a foto do condutor do acidente trágico (e anunciado), reconheci o ilustre condutor que me levou daquela vez a Santa Tereza, que nos convidou para ir "a seu ladinho" e me pediu para "não tirar a vista das senhoras da primeira fila" -- o que foi muito justo.
Agora, algum tempo depois, entendi quando abri um olho e vi seu sorriso carioca se transformar num rosto tenso sobre os arcos da Lapa e aqui e ali nas ladeiras de Santa Tereza. Mas Nelson Correa da Silva, o alegre e simpático condutor que me levou com segurança naquele dia a meu destino, certamente deve ter, ao longo de seus tantos anos ali, evitado tragédias naqueles bondinhos, assim como outros colegas de profissão.
Não me surpreende agora, depois de tanto lermos e vermos sobre o estado dos bondinhos, alardeados já há tanto tempo na mídia e desmentidos pelas autoridades, essas mesmas autoridades repassarem à parte mais fraca da corda -- o condutor -- a culpa de um acidente que vinha se propagando há tempos, vide acidentes recentes acontecidos, que poderiam ser evitados com cuidados muito pequenos da manutenção, que não foram feitos -- por exemplo, a grade rompida nos arcos que levou à queda fatal do turista francês em junho deste ano.
Nelson Correa da Silva é vítima, caras autoridades do Rio de Janeiro, e herói, por tantos anos, provavelmente, ter feito manobras que evitaram outras tragédias. Pena o seu descaso -- das autoridades do Rio de Janeiro
-- ter feito vítimas fatais e ter levado o sorriso, a ginga e a graça de Nelson de todos nós.