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No blogue escrevo meus próprios textos (contos, crônicas, poemas, prosa poética) e também sobre os mais variados assuntos: literatura, cinema, viagens, gastronomia, amenidades, humanidades, música. Tudo que me toca. E que possa tocar os leitores.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Em Elizabeth Bishop, a sábia arte (de saber perder)

Vão-se os anéis, ficam os dedos. Ouvi sempre minha mãe dizer. Que deve ter ouvido de sua mãe. Que num efeito myse-en-abyme deve ter ouvido da sua, e ouvido e ouvido... uma história sem fim. Acreditei nisso. Me fiei nisso.
Sempre que perdia algo, fosse material, não fosse, me lembrava desse ditado.
Mas depois que cresci, eu conheci a literatura, os autores, os textos, os poemas. Em Emily Dickinson, por exemplo, sofri muito ao ler a tradução de Haroldo de Campos:

Tive uma joia nos meus dedos —
E adormeci —
Quente era o dia, tédio os ventos —
"É minha", eu disse —

Acordo — e os meus honestos dedos
(Foi-se a Gema) censuro —
Uma saudade de Ametista
É o que eu possuo —

Há sempre uma saudade na perda, seja ela qual for... Uma gema se vai, e olhar os dedos significa lembrar-se dela, a ametista a brilhar em nossa memória marcando sua falta. Apesar da beleza, sempre me dói ler este poema. É belíssimo, mas não sei lidar com a saudade, presumo. Não sei enfrentar minhas faltas. A falta da gema. A saudade da ametista. Anos de terapia não solucionaram (ainda) esses pedaços da minha existência.
Há ametistas em mim que brilham e sinalizam ausências. Como boas ametistas, são discretas e delicadas, mas seu brilho chega à carne e a dor emerge.
Acordo preguiçosa, como Emily, achando que tudo está bem. De repente, a ametista se foi. Um carimbo marca para sempre minha saudade de pedra preciosa.
Mas conhecer a literatura, conhecer os autores, garimpar novos poemas tem seu lado ótimo também. Garimpando Elizabeth Bishop, já faz algum tempo, encontrei um poema seu sobre a sábia arte de saber perder...
Depois de anos sofrendo a perda de ametistas e gemas e dedos doloridos de saudades dickinsonianas, abro meus olhos sagitarianos melancólicos e sonhadores para um mundo mais real e prático da vida, afinal, eu disse no meu aniversário, aqui neste blogue, em dezembro, que queria mudar. Eis que estou mudando...
Saber perder é uma arte. E como toda arte, sábios chineses, demora-se a se absorver sua engenhosidade, sua prática, seu passo a passo. É preciso muito tempo e paciência de chineses para aprender a saber perder -- com dignidade, sem dor, sem tristeza, sem travo no coração, com desapego.
Eu, já faz algum tempo, ando perdendo coisas: chaves, livros, esquecendo roupas em hotéis quando viajo, objetos desaparecem sem a mínima explicação, perco pessoas de vista ou da minha vida. Isso, no passado, seria motivo de desespero, para alguém que tem uma vida tão controlado como eu, tudo num quadrado que construía diariamente para não me perder... Recentemente ando perdendo tudo: perdi recentemente um avião e a viagem, não liguei. A chave de casa, não mandei fazer outra. Perdi minha carteira com documentos na França, dinheiro e cartões. Foda-se! A caneta chiquérrima que minha mãe me deu de aniversário se foi nessa mesma perda... Deixei um par de brincos de pérola num hotel, jamais vou encontrá-los... Perdi alguns amigos ao longo dos últimos anos -- por intolerância minha, por intolerância deles, ou por ambas ao mesmo tempo. Perdi grandes amores (porque sempre vivo grandes amores, sou assim) -- por intolerância minha, por intolerância deles, ou por ambas ao mesmo tempo. Minha filha ficou adulta, estou "perdendo" sua presença na minha vida da forma como era antigamente -- constante, cotidiana, infantil, entregue; estou perdendo, e sei que faz parte da vida isso... E há outras perdas, que não convém dizer num blogue, apesar desse blogue ter um tom confessional...
Mas certas coisas são só nossas, como aquelas anáguas que nossas mães usavam anos 60 -- nós sabíamos que elas usavam, mas jamais elas ficavam à mostra. Sempre debaixo do vestido, escondidas.
Como se pode ver, ando perdendo bastante...
O grande ganho é que, fosse no passado, eu não aceitaria estas perdas, e lutaria contra a maré para manter, e sofreria para buscar meu par de pérolas custasse o que fosse, e manteria tudo como estava apenas pelo prazer de "ter" -- a posse de meus objetos, a presença das pessoas.
Que inocente eu era. Nós não temos nada. Nunca. Passamos pela vida tocando objetos, pessoas, situações, tão rápido que sequer nos damos conta.
Hoje posso perder minhas chaves. O mundo não desmoronará por isso.
Sábia Elizabeth Bishop e sua arte, a arte de saber perder. Perder faz parte da vida. Precisamos nos acostumar a isso também.


Elizabeth Bishop

Uma arte

“A arte de perder não é nenhum mistério;
Tantas coisas contêm em si o acidente
De perdê-las, que perder não é nada sério.
Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
A chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Depois perca mais rápido, com mais critério:
Lugares, nomes, a escala subsequente
Da viagem não feita. Nada disso é sério.
Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
Lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Perdi duas cidades lindas. E um império
Que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.
– Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério por muito que pareça (Escreve!) muito sério.“

(Tradução de Paulo Henriques Britto)

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One Art

The art of losing isn't hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster.

Lose something every day. Accept the fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
The art of losing isn't hard to master.

Then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. None of these will bring disaster.

I lost my mother's watch. And look! my last, or
next-to-last, of three loved houses went.
The art of losing isn't hard to master.

I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
some realms I owned, two rivers, a continent.
I miss them, but it wasn't a disaster.

-Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan't have lied. It's evident
the art of losing's not too hard to master
though it may look like (Write it!) like disaster.

(Elizabeth Bishop)

Ainda Ana C.

"te livrando

castillo de alusiones
forest of mirrors

anjo
que extermina
a dor"

(Ana Cristina Cesar)

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Confissão

Eu preciso dizer algo... Não podendo, Ana C. dirá por mim.
Para dizer o que sentimos, mas não podemos, ou não queremos, temos os poetas e a poesia: eles fazem a mediação por nós.
Quando dói, não diga nada, diga a linguagem dos olhos, abra a página 153 de um livro daquele poeta ou poetisa de quem você tanto gosta.
Ele dirá as palavras mágicas por você.

"Encontro de Assombrar na Catedral

Frente a frente, derramando enfim todas as
palavras, dizemos, com os olhos, do silêncio que
não é mudez.
[...]"

(Ana Cristina Cesar, in A teus pés.)

domingo, 29 de janeiro de 2012

The road not taken, de Robert Frost

The Road Not Taken

Two roads diverged in a yellow wood,
And sorry I could not travel both
And be one traveler, long I stood
And looked down one as far as I could
To where it bent in the undergrowth;

Then took the other, as just as fair,
And having perhaps the better claim,
Because it was grassy and wanted wear;
Though as for that the passing there
Had worn them really about the same,

And both that morning equally lay
In leaves no step had trodden black.
Oh, I kept the first for another day!
Yet knowing how way leads on to way,
I doubted if I should ever come back.

I shall be telling this with a sigh
Somewhere ages and ages hence:
Two roads diverged in a wood, and I--
I took the one less traveled by,
And that has made all the difference.

(Robert Frost, Mountain Interval, 1916)
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Duas trilhas divergiam numa dourada floresta de outono,
e lamentando não poder percorrer ambas
e ser um único viajante, longamente parei
e observei uma delas o mais longe que pude
até onde se curvava num mato baixo;

Então tomei a outra, igualmente boa,
e tendo talvez um atrativo especial,
pois o capim a cobria e necessitava o uso;
embora quanto a isso, passar lá,
as teria marcado na verdade igualmente.

E ambas naquela manhã igualmente descansavam
cobertas de folhas que nenhum pisar enegrecera.
Oh, deixei a primeira para um outro dia!
Entretanto sabendo que um caminho leva a outro,
duvidei se algum dia eu voltaria.

Eu contarei isto com um suspiro
em algum lugar, eras e eras distante:
duas trilhas divergiam num bosque – e eu
segui pela menos percorrida,
e isto fez toda a diferença.

Tradução Luiz Felipe Coelho (luizfelipecoelho.multiply.com)

Alta estação

Verão

Disseminação.
Recolha.
Tempo de recolher palavras
E disseminar sentimentos.
Momento de areia branca,
fundo azul, palavras sonoras:
sereia, farol, maresia, conchas.

Mas sou mesma de sempre.
Essa mulher que quer ganhar
os mares e o mundo.

(um dos poemas do meu minilivro 4a estação.)

"O bricoler", de Lizete Mercadante (a RedCat)

"O bricoler


Estranho que de uma convivência de trinta anos, tenham restado dele apenas duas imagens superpostas. Eu muito pequena, cabendo inteira no espaço de seu abraço. A barba por fazer me raspa o rosto, é a primeira vez que experimento essa sensação ao mesmo tempo desconfortável e de intenso prazer. Ali, naquele refúgio, nada poderia me colocar em risco.
Depois, essa barba cresce, é branca e longa, até que um dia ele a corta e seu rosto fica macio e liso. É assim que me lembro dele nos últimos anos de sua vida. Chapéu, sempre, óculos escuros, terno, a inseparável bengala.
Todas as manhãs ele desce os dez degraus que levam à rua e dá sua caminhada pelos lixos. Com a ponta da bengala apalpa e separa, lançando o olhar experiente aos tesouros que vai descobrindo e recolhendo com gestos rápidos. Pequenos objetos somem dentro da sacola de plástico cuidadosamente montada e costurada com os saquinhos que sobraram do leite. Ou uma outra qualquer roubada de alguma loja.
Depois dessa triunfante expedição, ele retorna ao apartamento, fecha-se em seu quarto onde já há muitos anos dorme sozinho, troca o terno pela camisa de flanela xadrez, dobra com cuidado o lenço de seda branca que usou no pescoço, e então senta-se ante uma infinidade de vidros e latas de todos os tamanhos, cada qual contendo o fruto de sua coleta diária.
São caixas vazias de fósforos, pedaços de fio e de barbante coloridos, latas, pedaços de tecido e de couro, botões, parafusos e pregos, restos de arame, restos de brinquedos, de madeiras, de vidros, e os mais estranhos objetos: porta-retratos quebrados, canetas esferográficas vazias, brincos sem par, tampinhas de garrafas, restos de papelão.
Quando morreu, enchi mais de trinta sacos grandes de lixo com o conteúdo de seus vidros e estantes. Enquanto as lágrimas escorriam por meu rosto, lembro-me de que pensava na festa que alguém como ele faria se pudesse encontrar em alguma esquina aqueles despojos.
Hesitei antes de enfiar no saco seus apitos e as varinhas de todos os tamanhos, com pedaços de pano amarrados à ponta, que ele usava para espantar moscas. Deitado, media a distância do inseto e escolhia sem pestanejar aquela que se adequasse ao alvo. Pouco errava. Ele tinha uma prática de anos.
E os apitos eram para chamar minha mãe.
Durante meus dez anos de análise percebi todos os esforços que fez meu analista para que eu invertesse o espelho de olhar o passado. Diversas vezes entendi, por trás de sua cuidadosa sutileza, a pergunta embutida: não vê que foi a sua mãe que coube a parte mais dura?
Sim, eu via.
Foi minha mãe quem carregou sozinha a barra de conduzir a família quando ele desistiu de tudo, trancou-se naquele quarto coalhado de lixo e ali viveu por quinze anos, até morrer, falando com suas mulheres — ela e eu — apenas o trivial. E assim mesmo havia o apito, para economizar o chamado que obrigatóriamente o faria pronunciar o nome dela.
Recusando-se a compreender as leis que regiam as coisas, ele nunca tinha pago aposentadoria, nem se preocupado em legalizar seus negócios. Ao fugir do convívio social, acreditara que o dinheiro recebido pela venda da última casa de comércio que possuíra — aquele armazém que para mim foi o primeiro parque de diversões — seria suficiente para nos manter, a ele e a nós duas, até o final dos tempos.
Não foi. Em menos de dois anos minha mãe se matava vendendo roupas, pegando bicos de costura, desfazendo-se de suas jóias e eletrodomésticos, recorrendo a empréstimos e à boa vontade de parentes.
Sim, eu via.
No entanto, jamais consegui inverter o curso de minhas sensações.
Aqui dentro, na região mais secreta de meu ser, onde as coisas doem ou deixam de doer depois que cicatrizam, o que ressoa sempre, o que me sustenta em momentos de profunda solidão, é sua voz erguendo-se de repente, calando a ladainha com que minha mãe sistematicamente me torturava, por horas a fio, ora criticando minhas amizades, ora se opondo a meus planos de fazer isso ou aquilo, ora num carrossel de lamentos e angústias e cobranças que me arrasavam e me faziam pensar em querer morrer. Era sua voz que a mim se estendia, que me envolvia como um casulo de solidariedade, que me ensinava o sentido da cumplicidade. "Chega, ela já entendeu." Só isso. E bastava para que cessasse aquele círculo de ferro em minha volta, para que eu de novo pudesse respirar, para que a esperança ressurgisse.
Em seu obstinado silêncio, em sua desistência do mundo, meu pai jamais deixou de ter sobre mim um olhar atento. Não se importou muito com minha sobrevivência física — ele jamais quis saber se havia ou não comida em casa, se o dinheiro seria ou não suficiente — mas soube, sempre, quando me faltava o ar.
Entre esse menino e esta menina nunca houve distância nem estranheza."


(A filha do Bricoler também guarda seus sacos de afetos, lembranças, cenas, pedras, conchas, títulos sem uso, bijuteria quebrada, cartões-postais, fotos rasgadas, pedaços de palavras ouvidas, pedaços de palavras nunca ditas, pedaços. De vez em quando junta tudo e deixa que água & sal lave e leve.
Texto de Liz Mercadante redcat@ocaixote.com.br)

(* A foto acompanha o texto originalmente publicado em ocaixote.com.br, revista eletrônica de literatura.)

"O último poema", resposta a Xico Santos e Ana C. e RedCat

"O último poema

Assim eu quereria o meu último poema.
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação."

(Manuel bandeira)


O ímpeto de postar Ana C. foi na madrugada. Fiz.
Depois de um sarau, ouvir palavras de açúcar cândi, palavras-tesoura e estilete e faca amolada, cheguei em casa e fui à minha estante real (nada de livros virtuais, pdfs e afins), quero papel e cheiro de tinta e prensa...
Peguei os exemplares de Ana C., como muitas vezes a poeta mais rápida do oeste, compulsiva, assinava.
Mais uma lembrança: A teus pés, Inéditos e dispersos e Crítica e tradução são livros de Ana C. que foram publicados numa coleção da autora entre 1998 e 2000 pela editora Ática. Tive o prazer e o deleite de trabalhar com esses originais com a editora responsável por esse material, Lizete Mercadante Machado, a nossa Liz, ou RedCat, como queiram.
Lizete e eu trabálhavamos juntas na Ática. Liz fazia todo o trâmite com Waldo Cesar, o pai de Ana C., que guardava e cuidava dos originais desde o suicídio da filha, claro que acompanhado pelos amigos mais próximos dela -- Armando Freitas Filho, Heloisa Buarque de Holanda, entre outros.
Ela editava os originais, exaustivamente conversava sobre eles com Waldo, lia, relia, resolvia dúvidas novamente; ao mesmo tempo, ficou imcumbida de escolher junto com o editor da arte (Marcello Araujo) a iconografia que acompanhou os textos. Waldo abriu fotos de infância e juventude, da família e de momentos íntimos de Ana Cristina.
Depois disso tudo, ela me chamou e disse: "Sandra, este é um original que precisa ser revisado com muito cuidado. A autora já faleceu, e o pai dela é muito rigoroso com o material, fotos, possíveis interferências e correções etc..." Eu interrompi Lizete e respondi: "Liz, fique tranquila, eu já conheço de trás para a frente A teus pés... Já li inúmeras vezes e tenho meu exemplar da edição de 1982, em que ela ainda estava viva quando foi publicado. Farei a leitura com o maior cuidado e delicadeza... Eu adoro poesia. Jamais faria interferências num original de Ana C."
Lizete suspirou, aliviadíssima e senti que se estabeleceu ali um ar de cumplicidade. Depois de minha leitura, o livro foi lançado e vieram os próximos. E Lizete sempre me dizia que Waldo Cesar mencionava sempre uma "pasta rosa", tesouro em que havia inéditos que a autora deixara inacabados antes do suicídio.
A Ática estava fazendo um canto de sereia para que ele liberasse esses originais da "pasta rosa". Foram anos de conversa, mas nada se concretizou. Waldo considerava que não era bom publicar textos inacabdos de Ana.
Pois ontem, depois de chegar em casa do sarau, em que ouvi tantas palavras "derramadas", "corpos de poemas", decidi que poria no ar minha seção de literatura "A biblioteca do Chacrinha" que estava atrasada, aliás. Fui à estante, sem dúvidas, certeira, peguei meus exemplares de Ana C., todos que tenho em papel. Fotos, poemas, cartas, frases, palavras dançaram ao redor neste meu espaço construído para se ter prazer.
Fui recortando os poemas que o sarau havia despertado na minha memória, estavam adormecidos. O sarau só fez as vezes do beijo do príncipe: os poemas de Ana C. acordaram lá num lugar distante onde estavam e vieram despertos e dispostos brincar de roda. Procurei na internet e vi que o Instituto Moreira Salles guarda o acervo da autora, a pedido de Armando Freitas Filho e da família, no Rio de Janeiro.
A "pasta rosa" foi enfim transformada em livro pelo IMS e se chama agora Antigos e soltos, publicação de 2008.
Acordo tarde, pois postar Ana C. me levou madrugada adentro.
Vejo um comentário de Xico com uma frase de Gikovate, que me remeteu a um poema de Manuel Bandeira, que abriu este post.


P.S.1. Depois de tanto tempo, continuo trabalhando com Lizete, a RedCat, que continua editora das ótimas. Conheçam O texto "O bricoleur", de Liz, em o caixote (revista eletrônica de literatura) em http://www.ocaixote.com.br/a_caixote21/cx21_contos_lizete.htm.
Acabei de reler e o coração faz subir um elevadorzinho de água até os olhos.

P.S.2. O Xico é editora da Altana e tem um blogue recente e textos (há muito tempo) belíssimos, conheçam: Folhetim de ausências http://folhetimdeausencias.blogspot.com/2012/01/bilhete_27.html.
"Bilhete" é um de seus belos textos.

sábado, 28 de janeiro de 2012

A biblioteca do Chacrinha. Hoje vamos receber... Ana Cristina Cesar...


Ana Cristina Cesar







"Quando entre nós só havia
uma carta certa
a correspondência
completa
o trem os trilhos
a janela aberta
uma certa paisagem
sem pedras ou
sobressaltos
meu salto alto
em equilíbrio
o copo d’água
a espera do café"


"Nada, esta espuma

Por afrontamento do desejo
insisto na maldade de escrever
mas não sei se a deusa sobe à superfície
ou apenas me castiga com seus uivos.
Da amurada deste barco
quero tanto os seios da sereia."


"Tenho uma folha branca
e limpa à minha espera:
mudo convite

tenho uma cama branca
e limpa à minha espera:
mudo convite

tenho uma vida branca
e limpa à minha espera:"


"As mulheres e as crianças
são as primeiras que desistem
de afundar navios."


"Mocidade independente

Pela primeira vez infringi a regra de ouro e voei pra
cima sem medir mais as conseqüências. Por que
recusamos ser proféticas? E que dialeto é esse para
a pequena audiência de serão? Voei pra cima: é
agora, coração, no carro em fogo pelos ares, sem
uma graça atravessando o Estado de São Paulo, de
madrugada, por você, e furiosa: é agora, nesta
contramão."


"Noite Carioca

Diálogo de surdos, não: amistoso no frio.
Atravanco na contramão. Suspiros no
contrafluxo. Te apresento a mulher mais discreta
do mundo: essa que não tem nenhum segredo."

"Encontro de Assombrar na Catedral

Frente a frente, derramando enfim todas as
palavras, dizemos, com os olhos, do silêncio que
não é mudez.
E não toma medo desta alta compadecida
passional, desta crueldade intensa que te
toma as duas mãos."


"olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado entre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas"


(Ana Cristina Cesar. In A teus pés. São Paulo: Ática, 1998.)





"A teus pés, livro de Ana Cristina César, alcança hoje sua verdadeira dimensão, inscrevendo-se na modernidade como literatura perene e de alta qualidade. No conjunto de poemas curtos, prosa, páginas de diário, correspondência, o tom de intimidade funciona como verdadeiro jogo de sedução estética. Feito de um sutil esconder/revelar que vai muito além do coloquial, torna-se uma inquietante reflexão sobre o próprio fazer do escritor. Não é por acaso que a autora dialoga com outras vozes poéticas contemporâneas. As referências a Walt Whitman, Carlos Drummond de Andrade, Elizabeth Bishop e outros são muitas vezes explícitas. A paixão, o desejo, as vivências urbanas e as impressões cotidianas tematizam uma poesia lancinante e ao mesmo tempo delicada. Ousado sem perder a elegância. A teus pés pertence àquela esfera da linguagem que é, como definia Ana Cristina Cesar, “um tipo de loucura qualquer... que meio tira do eixo”. (Texto do site do Instituto Moreira Salles, que guarda o acervo pessoal de Ana Cristina Cesar.)







Mosaico de fotos de Ana C., disponível em
http://www.blogger.com/post-edit.g?blogID=8215896781525334086&postID=4016663500923124428&from=pencil



O acervo pessoal de Ana Cristina Cesar encontra-se sob a guarda do Instituto Moreira Salles: cartas, originais de poemas e prosa, documentos, fotografias, dedicatórias e livros.
Acesse: http://ims.uol.com.br/hs/anacristinacesar/anacristinacesar.html

Poeta associada à geração marginal, A Teus Pés foi o último livro de Ana Cristina Cesar (1952-1981) publicado em vida.
Em 2008, o IMS publicou o livro Antigos e soltos, compilação com escritos inéditos da poeta. A seguir, um dos poemas do material inédito.

Flores do Mais

devagar escreva
uma primeira letra
escrava
nas imediações construídas
pelos furacões;
devagar meça
a primeira pássara
bisonha que
riscar
o pano de boca
aberto
sobre os vendavais;
devagar imponha
o pulso
que melhor
souber sangrar
sobre a faca
das marés;
devagar imprima
o primeiro
olhar
sobre o galope molhado
dos animais; devagar
peça mais
e mais e
mais


Livros de Ana Cristina Cesar

Novas Seletas (póstumo, organizado por Armando Freitas Filho)
Literatura não é documento (1980)
Antologia 26 Poetas Hoje, de Heloísa Buarque
A teus pés (1998) inclui: A teus pés, Cenas de abril, Correspondência completa
Inéditos e Dispersos, no qual são publicados documentos literários e até desenhos, que vão desde 1961 até 1983, ano da morte de Ana César.
Crítica e tradução inclui:Literatura não é documento, Escritos no Rio, Escritos em Londres, Algumas poesias traduzidas
Correspondência incompleta, constituído de 93 cartas, datadas de 1976 a 1980, enviadas a quatro amigas.


Algo sobre a poesia de Ana Cristina

(Disponível em: http://www.algumapoesia.com.br/poesia2/poesianet122.htm)

"Expoente da chamada poesia marginal dos anos 70, a poeta carioca Ana Cristina Cesar (1952-1983) tornou-se conhecida em escala nacional depois de figurar na antologia 26 Poetas Hoje, organizada por Heloísa Buarque de Hollanda, em 1976.

Inquieta, Ana Cristina viveu mais de uma vez, viajou pelo mundo, estudou literatura e cinema, publicou poesia em edições independentes. Escritora compulsiva, produzia poemas, cartas, artigos para jornais e revistas, traduções, ensaios. Entre os principais títulos deixados por Ana Cristina Cesar, encontram-se A Teus Pés, Inéditos e Dispersos, e Crítica e Tradução. Ana suicidou-se em outubro de 1983, aos 31 anos.

Sobre seu trabalho poético, diz o professor e crítico Paulo Franchetti: "Ana Cristina é um dos lugares principais (senão o principal) do novo discurso poético, que funda a produção e a leitura do fragmento, a recolha do lugar-comum e a incompletude estética como resultado da sinceridade confessional ou como índices da impossibilidade mesma da confissão total."

Segundo o ensaísta, o dado novo na poesia de Cristina está no coloquialismo, numa escrita que não quer ser literatura. "Escrevo in loco, sem literatura", anotou ela. É óbvio que essa mesma novidade não passa incólume pelo crivo dos estudiosos, que apontam na poesia dita marginal a falta de rigor e a tentativa de dar uma marcha à ré em direção ao piadismo e a certa inconseqüência do modernismo de 1922. Não falta também quem veja no movimento uma imagem invertida das vanguardas originárias dos anos 50. Enquanto estas são acusadas de formalistas, o pessoal da poesia marginal recebe a pecha de ter relaxado os procedimentos formais da poesia.

O certo é que Ana Cristina Cesar tornou-se o nome mais forte entre todos os identificados com a poesia marginal. O poeta carioca Armando Freitas Filho, que foi amigo de Ana Cristina e se tornou, depois, o principal divulgador de sua obra, tem uma frase interessante para caracterizar a rapidez e a brevidade da vida e da obra da autora de A Teus Pés. Para ele, a amiga queria "pegar o pássaro sem interromper o seu voo"."

Friedrich Nietzsche

"One
must
still
have
chaos
in oneself
to be able
to give birth
to a dancing
star."

(Friedrich Nietzsche)

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Na carne e no osso

Quadrilha

"João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para o Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história."

(Carlos Drummond de Andrade)

Hoje, depois de tanta literatura, amores, poemas, relações mal acabadas, mal alinhavadas, malpontuadas, depois de tanta semiótica, ótica cruel de desencontros, mas... às vezes, ao contrário disso tudo: encontros: rufar de tambores de alumbramento, de apaixonamento, de entrega e de conquista --uma espada cravada no peito da presa, e por que não, em nosso peito também? Que o amor tem dessas vicissitudes. E dessas surpresas. Um despertar, que é um farfalhar de folhas, acordando a vida depois de um outono silencioso de tons amarelos e decíduos... A estação à espera de um sinal...
Pois hoje, justamente hoje, eu entendi / a frio, a ferro, a estilete / rasgando a carne raspando no osso o sentido mais dolorido do poema "Quadrilha", de Drummond.
Fazer doer no outro a tristeza do amor não correspondido não lustra nem um pouco minha vaidade, não ::: é mais sofrido em mim -- (faz lembrar a dor socada profunda de meus próprios amores não correspondidos. É uma cerimônia estranha de desenterrar de mortos.)

Um trecho de "Canção", de Allen Ginsberg

Allen Ginsberg, em 1953. Foto de William Burroughs.




Canção

[...]
e assim temos que descansar
nos braços do amor
finalmente
temos que descansar nos braços
do amor.

Nenhum descanso
sem amor,
nenhum sono
sem sonhos
de amor -
quer esteja eu louco ou frio,
obcecado por anjos
ou por máquinas,
o último desejo
é o amor
- não pode ser amargo
não pode ser negado
não pode ser contigo
quando negado:

o peso é demasiado
- deve dar-se
sem nada de volta
assim como o pensamento
é dado
na solidão
em toda a excelência
do seu excesso.

Os corpos quentes
brilham juntos
na escuridão,
a mão se move
para o centro
da carne,
a pele treme
na felicidade
e a alma sobe
feliz até o olho -

sim, sim,
é isso que
eu queria,
eu sempre quis,
eu sempre quis
voltar
ao corpo
em que nasci.

(Allen Ginsberg. Tradução de Cláudio Willer. Porto Alegre: Lp&M, 1984.)

Poesia na fotografia de Allen Ginsberg

Jack Kerouac fotografado por Allen Ginsberg/Courtesy of the National Gallery of Art.



"Allen Ginsberg é lembrado e conhecido por sua poesia. Entre as décadas de 50 e 60 ele foi o porta-voz da geração de desajustados e desencantados, conhecidos como Beats. Eles estavam nos bares e nos telhados e na estrada; ouviam jazz, perdiam o sono consumindo literatura, e viviam se metendo em encrencas. Um grupo pequeno de rapazes, e Ginsberg estava no centro disso tudo." (Texto traduzido do site: http://www.npr.org/blogs/pictureshow/2010/05/05/126532131/ginsberg.)

Eu estava navegando (surfando) nas ondas da internet hoje à noite, esperando chegar o horário do encontro para ir ao teatro, meia-noite, assistir ao Ridículos... Horário de uivos, lobos, lua cheia, sereno, mães recolhendo crianças... Gosto de procurar fotos do meu querido Cartier-Bresson, revê-las e sentir que a arte me arrasta desse meu mundo miúdo de dia a dia esmagado pela roda do trabalho. E há tantos outros fotógrafos de que gosto, que não vou elencar aqui, são muitos. Também me interesso por arquitetura e arte, então a internet acaba cumprindo bem esta função de encaminhar meus olhos para essas belezas da vida, antevê-las, para que num breve futuro eu possa vê-las de perto, não apenas por meio de pixels.
Também procuro textos de literatura e autores, e acabo achando, por acaso, outras coisas incríveis, como este site que acabo de encontrar (http://www.npr.org/blogs/pictureshow/2010/05/05/126532131/ginsberg).
Falando em uivos, encontrei este site que menciona o interesse do poeta Allen Ginsberg por fotografia (um dos poemas de Ginsberg intitula-se "Uivo"). No site há catorze fotos de Ginsberg que ele fez do grupo e de parentes dele: o escritor Jack Kerouac, o poeta William Burroughs e amigos, e a avó Rebecca Ginsberg; há fotos dele próprio, feitas por William Burroughs.

Allen Ginsberg fotografado por William S. Burroughs, em 1953



Um poema de Allen Ginsberg

Canção

O peso do mundo
é o amor.
Sob o fardo
da solidão,
sob o fardo
da insatisfação


o peso
o peso que carregamos
é o amor.


Quem poderia negá-lo?
Em sonhos
nos toca
o corpo,
em pensamentos
constrói
um milagre,
na imaginação
aflige-se
até tornar-se
humano -


sai para fora do coração
ardendo de pureza -


pois o fardo da vida
é o amor,


mas nós carregamos o peso
cansados
e assim temos que descansar
nos braços do amor
finalmente
temos que descansar nos braços
do amor.


Nenhum descanso
sem amor,
nenhum sono
sem sonhos
de amor -
quer esteja eu louco ou frio,
obcecado por anjos
ou por máquinas,
o último desejo
é o amor
- não pode ser amargo
não pode ser negado
não pode ser contigo
quando negado:


o peso é demasiado
- deve dar-se
sem nada de volta
assim como o pensamento
é dado
na solidão
em toda a excelência
do seu excesso.


Os corpos quentes
brilham juntos
na escuridão,
a mão se move
para o centro
da carne,
a pele treme
na felicidade
e a alma sobe
feliz até o olho -


sim, sim,
é isso que
eu queria,
eu sempre quis,
eu sempre quis
voltar
ao corpo
em que nasci.

(Tradução de Cláudio Willer. Porto Alegre: Lp&M, 1984.)

The aim of life


Na foto, Henry Miller.

"The aim of life is to live,
and to live means to be aware,
joyously,
drunkenly,
serenely,
divinely aware.”

Henry Miller (1891-1980)

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Abertos a mudanças


Fotos em preto e branco ganham nova roupagem pelo olhar da artista sueca Sanna Dullaway. A artista colore fotos históricas que ficaram famosas em preto e branco.


Eu desde que usava blusas de lã tricotadas por minha mãe, com botõezinhos pregados por ela, sapatos da marca Kicker e roupas feitas por ela na máquina de costura Anker, desde o tempo que copiava meu nome numa folha para aprender a escrever (meu nome foi a primeira coisa que aprendi a escrever e ler e Alice no País das Maravilhas foi o primeiro livro que tive), me lembro desta foto antológica. Devo ter visto em revistas na casa de minha avó ou em revistas em minha casa.
A enfermeira e o soldado estimulados e excitados com a notícia do fim da 2a Guerra. O beijo nas ruas de Nova York.
Vi esta foto inúmeras vezes em minha vida. Vi e revi. Até hoje tenho os detalhes na memória. O giro no corpo da enfermeira. O uniforme do marinheiro. A fúria do beijo roubado (ao que parece). As pernas lindas desenhadas nas meias finas brancas sobre sapatos de salto. E todos rindo ao redor. Sem moral e a rigidez típicos do povo norte-americano. Aquela foto P&B. O P&B das fotos de família, que guardam as memórias.
Linda!
Pois hoje ela foi colorizada.
Eu, que sou tradicionalista, achei que teria um impacto. Não tive.
Não sei se gosto. Ou se não gosto dessa novidade em mim...



Disponível em: http://virgula.uol.com.br/ver/noticia/inacreditavel/2012/01/19/292482-artista-colore-fotos-historicas-que-ficaram-famosas-em-preto-e-branco

Escambo

Quando tudo parece não ter saída, nós podemos fazer... trocas, escambos com a vida...

"As trocas

Um fruto por um
ácido
um sol por um
sigilo
o oceano por um
núcleo

o espaço por uma
fuga
a fuga por um
silêncio

-- riquezas por uma nudez"

(Orides Fontela)

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Nesse estado de espírito

minha alma breve breve
o elemento mais leve
na tabela de mendeleiev

(Paulo Leminski)

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Ano Novo, liberdade, "Uns braços", de Machado de Assis, e O Sexo e a Cidade

Transito livre pela cidade. Os faróis são ondas verdes, o trânsito é gentil como o coração da Porto Seguro. Os motoristas estão calmos, dão a vez com generosidade. Os cafés estão vazios, há mesas à vontade para se sentar, os restaurantes não têm filas, os bares não estão lotados. E pasmem! Não há fila de espera no Piola dos Jardins às 22h numa 5a feira!
É possível sair de Perdizes num dia de chuva forte às 20h e chegar em 15 minutos nos Jardins.
Serenidade e calma. São Paulo é minha cidade da adolescência, quando eu fazia trajetos longos em poucos minutos, os carros deslizavam pelas grandes avenidas, e a cidade não era esse formigueiro incontido, impossível, caótico. São Paulo era deliciosa. E detalhe: tinha o Belas Artes... Não há mais... Isso me me parece um sinal de envelhecimento, quando começamos a lembrar de coisas que existiam na cidade, que eram muito importantes para uma geração e que agora não existem mais. (O Belas Artes, por exemplo.)
O fechamento do Belas Artes é algo que não me desce goela abaixo. Está entalado. Em qualquer paiseco sério e comprometido com a cultura deste mundo o Belas Artes estaria vivo, respirando, marcando a vida do cinema na cidade... Em Buenos Aires há uma espécie de Belas Artes perto do Obelisco. Um cinema de duas salas, antiquíssimo, decadente, meio sujo, mas vivo! Mesmo mal das pernas está ali, com suas fotos de glória nas paredes -- estrelas de Hollywood num tapete vermelho em estreias, o dono do cinema a recebê-las com seus óculos Ray Ban naquelas fotos sépia --, há uma vitrine com máquinas e filmadoras antigas, material fotográfico. Tudo muito decadente, mas as salas estão ali, firmes. Eu o frequento há anos, sempre que vou a Buenos Aires, vejo um filme ali, para dar meu incentivo àquele homem do Ray Ban, que hoje é um idoso que claudica por ali, mas mantém aquelas duas salas com bons filmes sempre. Nunca deixo de visitar aquele cinema, porque se um dia eu for a Buenos Aires, e suas portas estiverem fechadas, um fio de esperança terá extinguido em mim... Agora que o Belas Artes morreu, sinto ainda mais forte esse desejo de me sentar nas poltronas do cinema do homem do Ray Ban... Manter vivas suas duas salas!
Mas nesses dias de janeiro, São Paulo tem sido uma surpresa para mim. Em geral nessa época viajo e fico fora até meados do mês. Este ano, por uma série de razões, resolvi ficar por aqui e pela primeira vez passei o reveillon aqui também. Com meus pais. Pela primeira vez. Pois sempre viajava nessa época, e eles também.
O fato de ter começado a trabalhar numa editora no dia 2 de janeiro também me segurou aqui. Viajar para voltar dia 1 de janeiro, ninguém merece! Mas gostei da experiência e pude ver São Paulo e as pessoas com outros olhos...
Primeiro, foi uma delícia passar o ano novo com meu pais, estar com eles, ver o sorriso deles por eu estar ali. Me deu uma sensação de estar inteira na vida. E poder dar isso para eles, já que eles me deram tanto. Filhota deu um alô de ano novo de longe, de onde estava. Saudade... Mas assim caminha a humanidade quando os filhos crescem.
Às 23 horas, saí da ceia com os pais e fui me arrumar para uma festa no Kitsch Club. Que também foi ótima. Me montei: vestido lindo, presente da filhota, sandálias do bazar da Lucy in the Sky, bolsinha retrô da feira de antiguidades do Bixiga, maquiagem no ponto. Pronto! No salto, como dizem. Boa música, gente conhecida, balanço. Me senti no lugar certo, na hora certa, com as pessoas certas. Inteira. E boa companhia. Ótimo.

Sandra-caleidoscópica, no Kitsch Club, antes do brinde fatal pós-marguerita. Vertigem na pista, mas uns braços...

Verti uma marguerita -- que ninguém é de ferro --, mas na sequência Debbs me ofereceu um proseco delicioso para brindar conosco o ano novo. verti também rapidinho. E foi assim: zuuuum! Eu estava na pista dançando e senti que a marguerita e o proseco me provocaram uma leve vertigem, mas me mantive firme sobre as minhas Lucy in the Sky, que a gente tem que se manter "no salto", diz a etiqueta do Sex and the City!
Por sorte estava acompanhada na pista, e minha leve vertigem foi apanhada por 'uns braços' -- não, não é o conto delicioso de Machado de Assis, "Uns braços", caros leitores, aliás, excelente dica de leitura para o início deste 2012. Será talvez minha 10a leitura deste texto em que Machado apresenta um dos personagens (Borges) "virgulando suas frases com vinho", uma das imagens literárias mais belas e originais que já passaram por mim.
"(...) Durante alguns minutos não se ouviu mais que o tinir dos talheres e o ruído da mastigação. Borges abarrotava-se de alface e vaca;
interrompia-se para virgular a oração com um golpe de vinho e continuava logo calado. (...)"
É maravilhoso ou não é... Recomendo a leitura desses braços que vão apaixonar o leitor e dessas vírgulas golpeadas por vinho...
Bem 'uns braços' contiveram minha vertigem de ano novo, graças a Deus! Já pensou, poderia ser um mico e tanto! Mas dali a alguns minutos eu já estava balançando ao som de "Taj Mahal", de Jorge Ben Jor. Foi só um charmezinho de Carrie Bradshaw... Se é que me entendem...
Depois, acordar tarde no dia seguinte, leve leve ressaquinha e o banzo do dia 1 de janeiro é estranho. Mas a partir do dia 2, a cidade foi se mostrando carinhosa com seus habitantes. Está gostosa, não está muito quente, não está barulhenta nem hostil. As pessoas estão mais relaxadas, portanto, mais simpáticas e receptivas; mais descansadas, acabam sendo mais acolhedoras em seu olhar e em suas palavras.
Em meu caminho de carro até a editora, em que fico seis horas, levo apenas entre 5 a 10 minutos. E a volta é ainda mais rápida, por conta do tipo de caminho mais retilíneo.
Quando chego da editora, sempre tem uma programação: ou é bar, ou é cafeteria, ou é restô, ou é outra coisa, ou é sorveteria, ou até mesmo as ótimas padocas de Perdizes, Pompeia e Higienópolis, ou mesmo da Lapa, que estou aprendendo a conhecer melhor.
Então, está ótimo, porque como não tem quase trânsito, consigo fazer tudo isso, e ainda chegar em casa e trabalhar ainda um pouco antes de dormir. O tempo rende numa cidade gostosa assim...
Hoje por exemplo consegui trabalhar de manhã em meu escritório, fui para a editora, onde fiquei 6 horas, voltei para casa, peguei minha filha que chegou de viagem, fui jantar com meus pais, voltei para casa, e ainda fiz uma programação depois de tudo isso e agora escrevo aqui no blogue. O dia rendeu.
Todas as pessoas com quem encontro, ou com quem falo, ou que me escrevem por e-mail têm comentado sobre a cidade, como está gostoso estar aqui nessa condição de cidade-acolhedora e não hostil.
Quero mais disso. Quero uma São Paulo não ofegante, não extenuante, não asfixiante. Quero essa São Paulo que traz uma sensação de leve liberdade. Para mim e para todos.

** O conto:
O conto "Uns braços", de Machado de Assis, é um de meus preferidos.
Num resumo bem grosso modo, o jovem aprendiz Inácio passa a morar na casa do solicitador Borges. Assistimos então à paixão do adolescente pela esposa de Borges, Severina, a dona dos 'braços' que seduzem o rapaz. Ela também se sente atraída pelo adolescente, e essa sedução ganhará força em meio às dificuldades de convivência com o mau gênio e a truculência do "solicitador". De repente, uma vertigem, uma dúvida. Cabe ao leitor a interpretação.
O conto pode ser encontrado em suas coletâneas mais conhecidas já publicadas, mas para os que preferem a leitura virtual ele está disponível na internet em vários sites para download (por exemplo em: http://www.livrosgratis.net/download/2169/uns-bracos-machado-de-assis.html e em superdownloads).

** O filme:
Há também o link para assistir online ao filme homônimo do diretor Adolfo Rosenthal:
http://assistirfilmesonline.biz/uns-bracos-online/ Direção: Adolfo Rosenthal
Elenco: Ana Petta, Antonio Moraes, Celso Frateschi.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Confissões de ano novo

“Há três coisas para as quais eu nasci e para as quais eu dou minha vida. Nasci para amar os outros, nasci para escrever, e nasci para criar meus filhos. O ‘amar os outros’ é tão vasto que inclui até perdão para mim mesma, com o que sobra. As três coisas são tão importantes que minha vida é curta para tanto. Tenho que me apressar, o tempo urge. Não posso perder um minuto do tempo que faz minha vida. Amar os outros é a única salvação individual que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca [...].”

(Clarice Lispector)


Eu nasci para amar minha filha e amar as pessoas. Não estou perdida, estou salva, porque dou amor e recebo amor em troca, de inúmeras formas...