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No blogue escrevo meus próprios textos (contos, crônicas, poemas, prosa poética) e também sobre os mais variados assuntos: literatura, cinema, viagens, gastronomia, amenidades, humanidades, música. Tudo que me toca. E que possa tocar os leitores.

quarta-feira, 30 de abril de 2014

As marcas da estrada

Chegar aos 50 anos não é o "uó" como eu pensava. Não. Talvez seja para quem vê na decadência das células, núcleos, epitélios, cores e toda parafernália corpórea algo irresgatável. Não para mim. Nas fendas do corpo eu reencontro raízes e a construção da minha vida e da minha personalidade. A eterna marca de expressão entre as sobrancelhas está ali desde adolescente: preocupada com as notas das provas, depois com o vestibular, chegar no horário em casa para não levar aquela bronca, preocupada se meu pai deixaria eu ir àquela festa, e mais, se deixaria eu ficar até altas horas como eu gostaria...
Ela foi ficando mais marcada ao longo da vida: a crise existencial para abandonar a primeira faculdade, e depois a crise maior para abandonar a segunda faculdade, de medicina, e seguir o curso de letras. Ela se aprofundou. Mais tarde cuidar de uma pequena linda, fofa, delicada, que eu não queria que o mundo arranhasse com suas garras de dragão. Tentei ao máximo protegê-la das lanhadas da vida; muitas vezes consegui, outras não. Nesse processo, a marca de expressão se tornou uma leve ruga, que me dava a aparência de uma pessoa séria. A filha foi crescendo, eu fui amadurecendo, e o tempo foi se incumbindo de vincar a minha marca mais conhecida. Hoje, a tal marca carrega minha expressão. Quando fui à dermatologista há algum tempo ela me disse: se lhe incomoda, colocamos um tico de botox, ela continua aí entre as sobrancelhas, sua marca, mas ela se atenua para evitar esse seu ar de cansaço. Meu coração acelerou. Não estou preparada para me separar das minhas marcas. Elas sinalizam no meu corpo um caminho, assim como placas sinalizam uma estrada. Se eu tirá-las, as pessoas se perderão em mim...
Chegará o tempo que o incômodo será tanto, que talvez eu atenue umas marcas, mas sem tirá-las jamais. Quero que elas continuem a me lembrar quem eu fui.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Aconteceu naquele dia

Era 4 de novembro de 1987, e fui à USP fazer uma prova de literatura francesa, prova bem difícil e complexa. Caxias que eu era, para não ter que refazer o semestre, pedi a todos os professores se poderiam antecipar trabalhos e provas para que eu não perdesse o semestre. Como eu era uma boa aluna, deu certo... E como dei conta não sei, mas fazia natação para gestantes, fazia curso para pais de primeira viagem, fazia Aliança Francesa duas vezes por semana, fazia faculdade de manhã, e ainda saía pra dançar com minhas amigas à noite. Além de tudo isso, estudava duplicado para deixar tudo fechado naquele semestre (só fiquei em recuperação em duas matérias, porque Isadora nasceu uma semana antes do que imaginava, e estas provas não consegui fazer). Bem, eu fui fazer a prova de francês, a professora Cecilia me disse que seria melhor fazer na sala dela, que ela precisava corrigir provas, fazer burocracias. Lá fui. Durante a prova, que foi logo depois dessa foto, eu comecei a não me sentir muito bem, como se eu tivesse com uma cólica menstrual. Por mais advertida que eu estivesse, por mais que estivesse bem orientada por meu médico, e tivesse feito cursos de como seria quando entrasse no processo de parto, eu era apenas uma menina de 24 anos, distraída, aérea, focada nos estudos, que não ouvia muito os sinais de seu corpo. Pois eu fui até o fim da prova de Cecilia, e a nota foi excelente. Me lembro bem disso. Mas aquela coliquinha estava muito chata. Fui dirigindo para casa. Pra se ter uma ideia de como eu era aérea, à noite meu ex-marido falou: "Sandra, você ainda não tem camisolas para levar pra maternidade, não é melhor comprar?" Falou assim meio receoso, porque eu poderia achar que ele estava se intrometendo nas minhas coisas, e então eu poderia ficar brava... Eu falei "vamos". Às 6h da manhã, acordo com a materialização de tudo aquilo: o tal tampão. Não me senti nervosa, nem ansiosa. Fui tomar um banho, eu mesma liguei para o médico relatando o dia anterior até aquele momento. Calma, fiz um pedido a ele: "Dr. Motaury, por favor, não esqueça de levar aquela linha de sutura que não é preciso tirar os pontos depois..." (Este tinha sido um tópico debatido nas consultas, meu medo de pontos, agulhas etc., retirada de pontos... Afinal, eu havia abandonado um curso de medicina por não suportar essas coisas... Ele me disse que havia a linha de sutura que o organismo absorvia, que eu ficasse tranquila. Era só eu lembrar no dia que ele levaria.) Depois de combinado tudo com o médico, fui chamar o pai de Isadora, que até então estava dormindo. Eu disse: "Então, está na hora, já avisei o médico e minha mala está pronta, é só você se arrumar e irmos pro hospital." Jamais vi o pai de Isadora nervoso durante todo o tempo em que estivemos casados, exceto nesse momento. Ele se levantou como um raio, quando foi se vestir, todo atrapalhado e nervoso a calça se rasgou de cima abaixo, e eu acabei gargalhando... Ele não riu e pediu pressa pra mim, e eu disse: "Calma, eu não estou sentindo nada." Eu sou uma pessoa tensa, que tenta se controlar o tempo todo. Mas nesse dia uma paz e uma calma tomaram conta de mim por completo. Acho que eu sabia que estava para ser presenteada pelo Universo com o que me faria crescer, ser verdadeiramente feliz e me tornar alguém muito melhor. Bem, nesse dia, às 19h40, veio ao mundo uma menina, que ganhou o nome de bailarina. Sou grata aos deuses e ao Universo que ela tenha sido destinada a mim.

terça-feira, 15 de abril de 2014

Sobre o doce sabor de envelhecer

"Os sonhos não envelhecem (...)" (Lô Borges)

Eu era muito magra, vestia macacão jeans e a bolsa era feita de algodão... Sempre tinha um livro debaixo do braço em caso de filas de ônibus ou de cinema. Não me apertava em caso de esperas longas. Eu lia vorazmente. Usava óculos, mas vivia sempre em outro mundo, sempre distraída no rodamoinho das histórias dos livros, das peças que via e do cinema que assistia. Eu absorvia aquilo tudo no corpo. O mundo era pouco pra mim, e eu fazia tudo ao mesmo tempo agora, e dava conta de ser as coisas de que gostava: eu queria ser livre, queria viver além das fronteiras, queria viajar países, estudar o máximo possível, e amar, e amar. E mais que isso: eu tinha sonhos. Inúmeros. Infindos e infinitos sonhos meus e de uma geração. Em meio ao turbilhão que era viver entre a ditadura e seus restos, a pseudoanistia, as mudanças sociais, a liberação feminina, eu ia caminhando firme e rápido. Eu imaginava que não iria envelhecer, porque eu tinha dentro de mim uma força e uma energia capazes de um moto perpétuo. Me imaginava aos 50, 60, muito jovial. O tempo, o desenhador do destino, me trouxe pelas mãos até aqui, e agradeço a Cronos ter-me concedido esse lapso (sim, porque uma vida é muito pequena) para presenciar tantas coisas. Para uma mulher, numa sociedade machista como a que vivemos, eu consegui exercer a liberdade que gostaria, que eu sonhava quando era adolescente. Queria ser uma mulher livre e independente; eis-me aqui ao lado de outra mulher que pude educar para ser livre a seu modo também. Queria estudar, ler, viajar, e a vida me permitiu todas essas coisas. As fronteiras dos países para mim são como as linhas Corrente: cruza-se muito facilmente para o outro lado, e aquele povo é nosso irmão, independentemente da diferença de costumes. Amar semprel, porque sem amor é impossível viver. Algumas coisas não foi possível, mas quem disse que podemos ter tudo que queremos? Eu tenho muito. O que tenho não é material. O que tenho está dentro de mim: tudo que vi e aprendi. Eu tive o privilégio de ver minha filha crescer, de poder estar próxima dela quando decidi que era assim que eu queria fazer. Eu que jamais quis ser mãe, ganhei um presente: Isadora me trouxe alegria, me trouxe centro, me trouxe sua presença delicada para tornar minha vida melhor. Pensando em todas essas histórias, o que dizer de envelhecer? Numa sociedade cada vez mais consumista e egoica, difícil não falar da aparência. É estranho sim, e por que não dizer triste, ver o corpo se transformar em direção ao declínio. Por mais que nos cuidemos, por mais que sejamos vaidosos. O corpo vai construindo veios e afluentes: suas marcas. Mas pra dizer a verdade, ao longo desse processo, o que mais tenho pensado é naquela menina de 14 anos que, de macacão, carregava um livro para o caso das filas. Não porque queira voltar a ser o que era. Não. Mas porque aquela menina tinha sonhos, inúmeros, infinitos. A minha vantagem em relação a ela são duas. Hoje eu sei que aqueles sonhos que ela devaneava são possíveis e realizáveis (ela não sabia...); aos 51 anos, vivendo sempre com esperança a cada manhã, a cada infortúnio ou a cada alegria, posso dizer com conhecimento de causa: os sonhos, meu bem, não envelhecem. E esse sabor é doce.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Quando a vida pede um táxi: destino

AS COISAS SELVAGENS

-- a firme montanha
o mar indomável
o ardente
silêncio --

em tudo pulsa e penetra
o clamor
do indomesticável destino.

(Orides Fontela)

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Outono



Dia de outono,
sol frágil e delicado faz o degelo.

Aquecido,
o coração quer mais.
E há de ter...

(Do minilivro 4a Estação)

Aos 15

Em 1977 eu tinha 15 anos. E sonhos. E sonhos. E um olhar que cruzava fronteiras e atlânticos, para além do desejo, para além do possível. Além de pegar forte nos estudos, ainda arranjava tempo pra ter uma vida cultural intensa com os amigos, e claro tinha namorados. Desde os 13 eu frequentava teatro, cinema e shows de música. Mesada curtíssima. Então tinha que recorrer a vários subterfúgios possíveis na época. Os espetáculos, depois de percorrer as casas de shows e teatros de São Paulo, iam depois em turnê pelos teatros das bibliotecas da cidade. Era aí que eu entrava. Sempre antenada na programação, assisti a peças premiadas por preços possíveis, shows que não poderia ver num teatro comum, vi palestras sobre literatura de grandes escritores falando de seu processo de criação, alguns deles já se foram, como Gianfrancesco Guarnieri. Ali também fiz cursos de história. A Biblioteca era mais que uma biblioteca, ela funcionava como um centro cultural, intenso, vibrante, dali você podia tirar muito para sua vida e seu futuro. Ali se faziam amigos, ali se combinavam passeios, cinema, shows. Pois aos 15, uma noite de verão, eu saí do clube depois de um dia de sol e muita piscina. Soube que haveria um show do Belchior na Biblioteca que ficava diante da praça do Largo do Rosário, bem em frente da Capela dos Escravos. Cheguei em casa, tomei um banho rápido, comi depressa, e pedi se meu pai podia me levar na Biblioteca. Era perto, eu costumava fazer aquele caminho a pé todos os dias na volta da escola, mas à noite era um pouco escuro e vazio. Meu pai então me levou e combinamos dali uma hora e meia ele me buscar, como sempre fazia com sua Brasília branca... Cheguei na bilheteria e a triste notícia: ingressos esgotados. Só se alguém chegasse para vender. Bom, esperei, esperei, esperei.... Quando estava quase na hora do show, desisti. Saí então para o jardim que ficava em frente. A noite estava linda, muitas estrelas, uma noite quente. Achei que não seria nenhum problema eu esperar ali sentada no jardim. Pena não assistir ao show do Belchior, que era um compositor da minha geração que tinha canções ricas, filosóficas, de protesto, de amor. Eu me sentei, e tinha na bolsa um livro, seria fácil esperar aquela hora e meia. Mas de repente me deu sede, e não havia um bebedouro lá dentro. Mas íntima que eu era daquele lugar me lembrei da torneira do jardim, me levantei rápido e fui tomar água. A torneira era baixa, mas na doce articulação da juventude, era simples descer até o chão. Quando me levantei, a boca molhada, fui fechando a torneira. Mas senti um alvoroço diferente. Algumas pessoas se fecharam ao meu redor. Era o próprio Belchior que estava ali, diante de mim, parado, olhos brilhantes, já vestido em seu figurino de palco, me olhando e não me olhando. Porque seus olhos estavam ali em mim, mas sua mente não... A equipe dele meio me fechou no meio da roda para protegê-lo. E eu fiquei ali, de pé, as mãos molhadas, e só pensando que eu estava diante do homem que havia escrito a letra de “Divina comédia humana”, "Velha roupa colorida", “A palo seco”, “Como nossos pais”, “Galos, noites e quintais” e tantas outras que marcaram minha adolescência. Não era o intérprete, era o poeta. Eu não me movi, fiquei totalmente muda, estátua. Ele ficou imóvel, de frente para mim, e eu de lado mas meu rosto podia vê-lo. Mas ele, como eu disse, me via, mas não me via, o ritual o levava pra longe longe, talvez por desespero, talvez por puro desejo, mas seu corpo apenas jazia ali. Sua alma estava noutro lugar, muito mais prazeroso. A equipe se alvoroçou, eu percebi, houve um pequeno desespero, o show estava atrasado, o público estava fazia tempo esperando... Eles disseram: “Belchior”... Muito baixo, como num mantra. Ele então olhou para baixo e para a direita, a um palmo de si, e me dirigiu aquele olhar de um átimo de lucidez, se despedindo. A trupe aliviou, era o sinal de que podiam todos seguir. Eu me mantive imóvel ainda, ao lado da torneira, entre as flores do jardim. Na porta de entrada, ele ainda parou – equipe tensa – e quis olhar as estrelas daquele céu de verão. Entrou. Dali a alguns minutos ouvi gritos lá de fora e a canção que me seguiria por toda a vida: “Divina Comédia Humana”. Dali a uma hora e meia, o show não havia terminado, mas seu Heitor Brazil estacionou sua Brasília branca diante da biblioteca. E eu fui para casa e guardei em minha caixa mais esta lembrança.

A força da natureza


Você já reparou no percurso da natureza? Ele não estanca, não interrompe. Não importa o que aconteça. De um solo arrasado, pequenos brotos surgem; mostram que o mundo tem seus impérios, ducados, latifúndios, ditaduras, mas a natureza é magnânima, e a despeito de intempéries, guerras, conflitos, não há terra destruída que não traga dentro de si frutos que a qualquer momento vão se mostrar.
As plantas aqui em casa são abençoadas por um combo de boas doses de sol, vento, janelas grandes e meus cuidados constantes. Mas ainda assim há um não sei quê de misterioso que faz crescerem aqui mudas que não crescem em quintais nem em lugares de terra muito fértil. Pois nestes vasicos que ponho nas janelas, tudo vinga. Como se fosse um pequeno milagre no deserto que são estes pequenos apartamentos nas metrópoles hostis em que vivemos. Qual é o segredo? Não sei. Pois crescem as gipoias, a árvore da felicidade, o lírio branco, a pimenta vermelha, a miniespada de são jorge, o hortelã, o arbusto de arruda, inúmeros vasos de suculentas, duas orquídeas, flores de maio, pés de tomate, algumas trepadeiras e um pé de melão. Além disso tudo, creiam, tenho quatro pequenos arbustos de umbu. Como eles vingaram aqui, em vasos, é um mistério, mas vingaram e estão crescendo fortes e verdes, subindo pro céu em direção ao sol. Há algum tempo plantei, e a despeito de meus dias, fossem eles bons, fossem eles tristes, estivesse eu alegre ou infeliz, cabisbaixa ou saltitante, o umbu foi subindo, dia a dia, passo a passo na alquimia de sua fotossíntese. E hoje ele está grande e fortaleceu, a ponto de eu ter que colocar num vaso maior, pois o umbu não é mais uma criança, está pedindo mais espaço.
Nós nos apegamos a nossas emoções, como se fossem únicas e inesgotáveis. Atingimos os píncaros e descemos ao fundo do lodo, aplicando uma importância que é um conjunto vazio. Mas somos insignificantes diante da grandeza da vida. Recorte um quadro de um filme: é isso que você é no grande filme do mundo.
Tanto é assim que o umbu cresce em seu percurso vital na natureza. Folha por folha, sobe e faz suas trocas gasosas sem pressa, buscando água e nutrientes lá na raiz, sem se importar com as minhas tristezas ou minhas alegrias. O umbu se desenvolve sem levar em conta meu sucesso ou meu fracasso nesse tempo todo.
O umbu segue vivo e cada vez mais forte.
A despeito de mim e de você.