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No blogue escrevo meus próprios textos (contos, crônicas, poemas, prosa poética) e também sobre os mais variados assuntos: literatura, cinema, viagens, gastronomia, amenidades, humanidades, música. Tudo que me toca. E que possa tocar os leitores.

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Trapaça feminina

Ambiguidade feminina

Cromossomo Y,
preste muita atenção
no que vou dizer:
um sim pode ser
um não.
Não enlouqueça
ainda.

Mas um recuo delicado
é sempre
um charme discreto
que quer dizer
um sim certeiro,
mas postergado
para amanhã
ou depois.
Paciência de monge
e encurralará
a presa.

E um não feminino...
Ah esse não feminino...
dito assim suspirado
com as mãozinhas a empurrar
creia:
é sempre um sim
de olhos coquetes,
unhas ferinas de Theda Bara
e falsa estola de vison --

tudo isso disfarçado
de uma falsa inocência
mourisca.

(Sandra Brazil, em 24/10/2011)

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Senhora do destino

Cheguei cansada da rua, já é tarde, estou querendo uma taça de vinho e uma sopa quente. Parei o carro na entrada. O porteiro me conhece há 18 anos já. Ele pede pra que eu espere, tem algo pra me entregar. Eu gosto muito das pessoas que trabalham aqui no prédio, e sempre brinco com eles quando meu humor permite. Este funcionário, especialmente, é com quem mais converso. Ele gosta de cinema, internet, política, programas da Discovery Channel, está meio por dentro de tudo de atualidades, gosta de documentários. Quando tem sobrando alguma mídia de enciclopédias ou de geografia e história, ele se lembra de mim, e guarda e me dá. Também quando tem filmes duplicados ele costuma guardar pra mim. Engraçado uma pessoa que nos conhece tão pouco acabar nos conhecendo de certa forma bem. Pois quando ele me entrega a correspondência de contas ou envelopes com trabalho eu brinco que ele só tem essas coisas ruins pra me entregar... Ele brinca que gostaria de ter coisas melhores, mas "é o que tem". Hoje, ele me entregou um envelope volumoso de uma editora, e eu disse: "Você é mau comigo, só contas e trabalho! Há algum tempo vinham flores e chocolates, até de admiradores secretos, você lembra? Até hoje não consegui desvendar quem são... Hoje, tudo mudou..." E fingi uma tristeza... Ele riu, e me respondeu: "Mas os cheques caem na sua conta diretamente, caso contrário, eu mesmo poderia entregar o pagamento dos trabalhos pra você... " E gargalhamos, pois essa foi uma boa saída dele. Uma pessoa boa, bem-humorada e gentil.
Quando peguei o elevador e cheguei ao meu andar, tocou o interfone e ele me disse que havia mais uma entrega pra mim. Fiquei na porta do elevador no meu andar esperando mais um envelope de trabalho provavelmente... Me embrulhei no casaco de lã e me aqueci com meus pensamentos mais profundos, imaginando que envelhecer tem uma faceta muito boa, que é essa tranquilidade que cai como uma névoa sobre nós, essa vontade de estar sereno na vida e no mundo; mas o outro lado da moeda é que estas surpresas inebriantes do destino são mais raras -- como receber flores de um anônimo... E pensativa me mantive, serena, esperando meu envelope.
Quando chegou, o que havia era uma rosa cor-de-rosa no chão do elevador, e no alto-falante interno o porteiro falou: "Pronto: assim você não diz mais que só recebe contas e não recebe mais flores. O nosso jardim tem essas rosas lindas o ano todo..." Uma rosa linda. Entrei, coloquei no vaso e fotografei. Afinal, as gentilezas são dignas de serem eternizadas.

quarta-feira, 28 de maio de 2014

A mão do tempo e William Shakespeare - Soneto 64

Soneto LXIV

Vendo que a mão do Tempo desfigura
A tão rica altivez dos dias idos,
Que jaz a torre em terra das alturas
Caída, ou o bronze eterno destruído;
Vendo que o mar faminto um dia ganha
Parte ao reino da praia a que vem dar
E no outro o solo a água lhe arrebanha
E ganha a perda e perde por ganhar;
Vendo que é tão comum mudar-se o estado,
Que o próprio estado lembra uma ruína,
Eis que a ruína me tem ensinado
Que o Tempo leva o amor e o amor termina.
Pensá-lo é dor mortal pois só nos cabe
O bem que nós tememos logo acabe.


Shakespeare, William. Sonetos. [Tradução: Jorge Wanderley]. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p. 158.


Logomarca

Ando pelas ruas nesse fim de tarde bem frio. Gosto de caminhar. Gosto de inverno.
Uma sensação boa: um vento gelado toca meu rosto. Levanto a gola do casaco.
Ao dobrar uma esquina, sob uma marquise um mendigo dorme o sono dos anjos -- tranquilo, incólume, como se não corresse riscos numa cidade brutal.
Olho para cima. O logotipo de um banco desfralda sua luz laranja, e vocifera seus poderes sombrios sobre nós.
O cobertor que aquece o mendigo é também de um laranja-vivo -- logomarca do grito daqueles que não têm voz. Nem vez.

(Sandra Brazil, em 2/8/2011, num fim de tarde escuro e extremamente frio, caminhando pelas ruas de Perdizes...)

segunda-feira, 26 de maio de 2014

No outono, os resíduos

No corpo

De que vale tentar reconstruir com palavras
O que o verão levou
Entre nuvens e risos
Junto com o jornal velho pelos ares

O sonho na boca, o incêndio na cama,
o apelo da noite
Agora são apenas esta
contração (este clarão)
do maxilar dentro do rosto.

A poesia é o presente.

(Ferreira Gullar)

domingo, 25 de maio de 2014

Melhor esquecer

Um domingo de céu chumbo e garoa fina é sempre um dia feliz pra mim. Me lembro da infância, quando todos detestavam que não poderiam brincar. Eu ficava na janela e acompanhava as sombrinhas coloridas que passavam na rua. Era um espetáculo. Muitos usavam uma capa de chuva que fazia um barulho característico ao caminhar. Eu adorava ficar observando. Essa era a brincadeira. E um sol forte e amarelo crescia dentro de mim.
Adolescente, tornou-se fácil gostar de tardes chuvosas. Os romances ingleses que eu lia descreviam charnecas, fog, céu pesado e cinza, e barras de vestido molhadas pela lama dos campos preenchiam minha imaginação.
Hoje, este céu cinza com chuva miúda me lembrou a pureza da minha infância que procurava sombrinhas coloridas a atiçar um sol ardente, fosse inverno, fosse outono.
Neste domingo em que sou uma mulher, o céu cinza faz vir à tona sentimentos que eu gostaria de esquecer.

terça-feira, 20 de maio de 2014

Disparada

Para minha mãe

"Prepare o seu coração
Pras coisas
Que eu vou contar
Eu venho lá do sertão
(...)
Aprendi a dizer não
Ver a morte sem chorar
Laço firme e braço forte(...)" (G. Vandré)

Hoje é dia das mães, mas, pra mim, é como outro dia qualquer. Vou trabalhar como todos os outros dias depois do almoço-comemoração, enfrentar a vida como se não fosse "meu" dia e eu pudesse, enfim, ter uma trégua. Angustiada com isso? Não. Onde muitos não têm trabalho ou mesmo objetivo, eu ganho pra fazer o que gosto, consigo ter meus poucos mimos à custa do que faço cotidianamente. Quer coisa melhor? Ninguém me diz: não compre esse pretinho básico, está caro; não faça isso; agora vamos viajar; agora não vamos mais viajar; nós vamos a este show; nosso filho fará tal coisa e não outra. Não. Mas, apesar de ser muito conservadora (e quem não é tendo nascido nos anos 30? E muita gente é tendo nascido ontem...), foi ela quem me ensinou sobre feminismo, naquele seu linguajar direto e sem meneios de fazenda. "Minha filha, nunca dependa de ninguém. Estude, estude muito. Seja a melhor. Assim você nunca precisará pedir nada e nunca ficará presa." E eu, mesmo sendo muito rebelde, tendo muitos atritos com ela, arranca-rabos homéricos, fui seguindo essa "picada" que ela, sem querer, abriu a facão pra mim. Fui trilhando um caminho sem volta; chegou um momento que era impossível recuar: a liberdade tem um preço alto, já diziam, mas eu não recuei quando tive que pagar a primeira moeda. Isso também quem me ensinou foi ela. Que temos que assumir o que fazemos, sempre. Filha de fazendeiros, meu avô construiu sua vida sobre a inteligência e o trabalho, mesmo sem saber trançar as letras. Por isso, ela queria ser advogada, mas, naquele tempo, apesar de terem dinheiro para mandá-la estudar, ela não pôde, porque no pensamento deles as filhas mulheres tinham que se preparar para se casar. Ela se frustrou, mas não desistiu, e se tornou uma das melhores mulheres para "casar": não há um bordado mais bonito do que o dela; seus doces são deliciosos e bonitos de se ver; sua comida, a melhor que já comi; sua casa, até hoje, brilha, e você pode chegar a qualquer hora do dia, ela estará arrumada e perfumada; meu vestido de casamento, foi ela quem escolheu a renda francesa e o casquete, mandou tingir sapatos e meias para ficarem num tom sobre tom. Pena ela nunca ter me perdoado por não ter me casado como ela gostaria, em grande estilo, de branco, festa e buquê. Eu era rebeldíssima, aceitei apenas uma cerimônia sem convites impressos, às 10h30, numa capela, sem festa depois, e sem o branco tradicional que ela queria; acabei escolhendo um salmão-pink, que a entristeceu demais... Mas ao longo da vida, apesar de nossas diferenças, pude com a maturidade observar que nós somos uma caixa-de-Pandora-do-bem da união de nossos pais. Quando florescemos, pode-se ver em nós muitos dos traços deles, nas mínimas coisas: nos gestos, naquela ruga na testa, naquela paciência que você não sabe de onde retira, na sua força de leão que você, por mais medo que tenha, mostra a seu inimigo. Sem dúvida, a minha força, eu herdei dela. A minha pertinácia também. A obsessão pelos detalhes e por ter um entorno bonito ao redor, perfumado, também. A força para o trabalho, tudo dela. Do meu pai, eu herdei uma sensibilidade e uma delicadeza que me levaram a caminhos muito sutis, a observar o mundo com paciência e calma, observar as pessoas e descrevê-las com riqueza de detalhes, escrever sobre o mundo do dia a dia como se fosse as pedras do Taj Mahal, uma riqueza. Mas o que seria de mim sem a força dela? Um papel-arroz delicado que se quebraria diante da crueza do mundo. Então, apesar de nossas diferenças, tentei tirar o melhor dela, colocar em mim, para enfrentar a vida e as pessoas. Para quem me trata com delicadeza e carinho eu devolvo seu Heitor, calmo, paciente, sutil, silencioso, alegre. Para aqueles que me destratam, eu devolvo minha mãe-fazendeira: sobre as patas de um cavalo, eu disfiro palavras que nem eu gostaria de receber. E, muitas vezes, um silêncio que, seria preferível, ser trocado por palavras cruéis. Em nossa vida em família foi sempre ela quem deu o tom. Meu pai sempre concordava. Nós, os filhos, temos personalidade forte. Então, deve ter sido difícil pra ela elaborar isso. Sobretudo eu, a mais velha, a mais difícil, a mais impetuosa, mais cheia de vontade e personalidade. Mas fosse hoje eu teria dito a ela que reparasse bem: como ela poderia pedir para eu ser diferente? Eu sou igualzinha a ela em muitas coisas: "laço firme/laço forte". Foi ela quem me ensinou a guiar a vida assim, segurando firme as rédeas, não deixando que ninguém me conduzisse. Por isso, sempre que ouço "Disparada", eu me lembro dela, da sua infância em que ela aprendeu naquela vida de fazenda a ser firme e forte, a conduzir com o pai boiadas inteiras, a não ter medo de um touro, a cozinhar em fogão a lenha, a dizer não com a facilidade de quem diz sim, a ser dura (mesmo quando seu coração grita para que não seja, eu sei disso), a não mostrar muito sua felicidade (como se isso fosse uma fraqueza), a não chorar diante da morte e da dificuldade (apesar de sua profunda sensibilidade). Aos 78 anos, eu ainda a magino como quando eu era pequena: ela tange a vida como gado, vai conduzindo com laço firme seu destino.
Mãe este texto é pra você. Feliz dia das mães.

Como se faz uma tese

Muito cuidado com o que se pede. O Universo está sempre à espreita, ouvindo seus murmúrios de desejos e quereres. Experiência própria: você fecha os olhos, entra num transe onírico e vagueia naquele território, a vontade de ter algo muito desejado nas mãos. Não se engane. O Universo está ali, tramando, e, quando menos se espera, o "algo" está diante da sua surpresa, e você, constrangido, não sabe muito bem o que fazer com aquilo. Muitas vezes, você percorre as linhas do requerimento de seu desejo, sem especificações. E ele vem genérico demais, para você ter o trabalho de desbastar ao longo do tempo. Portanto, pedidos são como pesquisas e teses de pós-graduação: quanto mais você diminuir o recorte e especificar, melhor.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Sem explicação

Um sinal belisca
o miolo da intuição --
tudo outra vez.

O canto do galo.
O pio da coruja.
O farfalhar de penas.
Só o caboclo sabe do que estou falando.
A castanheira,
do alto de sua beleza, diz:
você da cidade não sabe de nada.
A natureza trará um presente.
A benzedeira percorre com arruda molhada
nosso destino.
A intuição faz plim-plim
e avisa:

o desejo

chega amanhã,

às 16h55.

(Em 16 de agosto de 2011)

Alfama, ginginha e saudades da Maria

Na segunda vez que estive em Lisboa visitei o bairro de Alfama pela primeira vez. Eu não estava bem, minha sinusite deu as caras no frio europeu e com aqueles carpetes nos hotéis...
Eu tinha febre e tossia muito, aquela tosse seca de sinusite. Os taxistas me ofereciam para parar em farmácias e comprar alguma pastilha, aí eu explicava que não adiantava, estava tomando antibótico e tinha que esperar passar o processo infeccioso mesmo, aí a tosse passaria.
Nesse dia da visita a Alfama, eu estava péssima, meus olhos estavam de farol baixo, a febre estava alta apesar do antibiótico e do antialérgico e anti-inflamatório. Antes, eu havia ido ao museu do azulejo, que é lindo, mas a visita tinha sido sofrida, apesar do brilho dos murais belíssimos... O museu do azulejo em Lisboa é um passeio ótimo, pena meu estado, pois a cada lance de escadas me lembro de uma sucessão convulsiva de tosse. Mas sobrevivi e adorei ver aquela beleza toda.
Depois, foi a vez de Alfama. Aquelas ruas tortuosas, em forma de labirinto. parece que você não vai sair em lugar nenhum. Mas de repente, pronto, você depara com um cantinho belíssimo, antiquíssimo, aquelas casas históricas. Tudo é medieval ali, além dos labirintos de suas ruas. Além da minha febre, que me fazia já sentir calafrios e andar em círculos por si só, a própria geografia do bairro ia me arrastando mais e mais para o destino minotáurico.
Bem, escureceu de repente. Era uma rua bem estreita. O sol não chegava ali.
Havia uma portinha numa esquina. Era uma espécie de boteco, mas não cabiam duas pessoas lá dentro sentadas, só se fosse em pé. Entramos. Foi pedida uma ginginha, um aperitivo português feito a base de cereja. Eu não pude experimentar, foi uma pena, eu que gosto de experimentar tudo. Mas a febre me consumia nas profundas, eu me sentia mal, e uma dose de álcool não me faria nada bem, pensei. Fiquei só observando.
Havia um balcão pequeníssimo. Do lado de cá uma mesica de nada e um banquinho. Comecei a ver tudo meio escuro. "Vou me sentar", pensei... Puxei o banquinho. A ginginha foi sendo sorvida a pequenos goles, como faz o bom bebedor. E a conversa deu seu start com a mulher que se postava ali detrás do balcão e tinha olhos bem grandes e escuros. Seu nome: Maria. Maria, como meu segundo nome, boa neta de portugueses que sou, não poderia ficar sem o nome da mãe de Jesus.
Pois a ginginha foi descendo lenta. E a conversa com a Maria também foi rolando solta. Maria foi contando que desde menina acompanhava a avó na cozinha de um restaurante. Dali foi um passo para, mocinha, ser a cozinheira de um restaurante de Alfama. Ela contou que as pessoas chegavam lá cerca de 22h e diziam: "A Maria ainda está aí... Só vamos comer se ela ainda estiver na cozinha". Pois ela que estava pronta para ir embora, punha de novo o avental, aquecia o fogão, e só pelo prazer de cozinhar e atender seus fregueses começava tudo de novo... Foram anos assim segundo ela.
Maria contou que aprendeu com a avó a escolher os melhores ingredientes. Ela disse, com aquele sotaque português que não sei imitar: "as cebolas, só compro as portuguesas, são as mais caras, mas as espanholas, por exemplo, parecem feitas de plástico, elas desfolham quando vamos fritar".
Eu, meio tonta no banquinho, fui registrando as histórias da Maria, e mais uma ginginha escorreu no copo. O copo foi esvaziando de novo, e a Maria foi nos contando agora suas histórias familiares. O bebedor de ginginha, atento, pois é um ótimo escutador de histórias de balcão.
Ela enfim havia se cansado e deixado o restaurante. Abrira então aquela bodeguinha onde servia os turistas que visitavam Alfama. Ali não dava para servir comida, porque era muito pequeno, apenas bebidas e alguns salgados. Eu perguntei: que tipos de salgado. Aí ela me mostrou um salgado típico, as pataniscas. Pedi um, quem sabe um pouco de sal me faria sentir melhor daquela zonzeira. Dei o primeiro nhac, era realmente uma delícia, feito de bacalhau e massa e frito. Ofereci a meu companheiro de viagem. Nhac. Também gostou.
Maria então nos contou que agora, para poder exercer sua arte da cozinha, convidava os familiares e amigos no fim de semana e servia suas deliciosas receitas, aprendidas com a avó.
Maria devia ter minha idade, ou até ser mais nova, mas já tinha filhos adultos e netos. É uma portuguesa muito bonita de cabelos e olhos escuros. Mas parece cansada e infeliz. Em apenas um momento, mencionou o marido que estava no andar de cima; percebi os olhos de Maria ao mencioná-lo, foram de um sofrimento acumulado profundo. Meu namorado então me abraçou com um carinho canceriano, percebeu que eu estava cansada e abatida no meu estado físico. Ele sorriu e falou a palavra mágica: San-San. Apesar das deliciosas histórias naquele cantinho de Alfama, naquele recorte no tempo, precisávamos ir, era preciso encontrar um restaurante de verdade e almoçar de verdade.
Nos despedimos de Maria, mas a vontade era ficar ali, na ginginha, nas pataniscas, de pé, no banquinho, ouvindo até de noite suas histórias um tanto melancólicas mas sedutoras -- afinal, ela é portuguesa! Mas essa foi uma das coisas de minhas viagens das quais jamais esqueci.
Tantas coisas acontecem. Conhecemos lugares, restaurantes, bares, pessoas interessantes, coisas incríveis...
Ora, pois! Eu tenho muita saudade daquela tarde em que eu descobri o que é uma ginginha, uma patanisca, mas, sobretudo, me ficam na memória as histórias e as saudades dos olhos escuros e marcantes de Maria.

(Em 11 de agosto de 2011)

Aviso do tempo

O tempo me mostrou hoje, há poucos minutos, suas garras de metal.
Eu estava cantarolando quando atendi a um telefonema e do outro lado da linha alguém disse:
"Senhoooora (é assim, bem marcado, pra você entender que envelheceu, apesar de se sentir ainda jovial), a Caixa "estará disponibilizando" para a senhooooora um seguro de vida com inúmeros benefícios, inclusive um auxílio funeral, para garantir um apoio à família nesse momento tãão difícil, um auxílio cremação..."
Exatamente nesse momento, a voz da tele-sei-lá-o-quê se tornou distante como num filme...
Não respondi.
Pus o telefone no gancho.

Eu não estava pensando em morrer.
(Em 27 de julho de 2011)

A chapa é quente

Eu deixei os jardins de Versalhes, uma sensação estranha. Tudo tão lindo, mas algo me revirava o estômago. Meu francês estranhamente estava na ponta da língua e afiado. Que estranho, tudo muito esquisito. A simetria daquele lugar começou a me dar engulhos.
De repente, como num filme, outra cena: eu estava de joelhos, as mãos presas, uma Marie-Antoinette sem ser, pensando em português, falando em francês. Surda, eu só via uma multidão, bocas bem abertas gritando sem som. A guilhotina tinia no alto, rasgando o vento com sua lâmina afiadíssima. Uma gota finíssima correu pela lateral do rosto. Era assim que se sentia um condenado então...
Esperei a lâmina descer e sabia que seria tudo muito rápido. Num átimo, pensei na minha filha, nos meus pais, no meu trabalho, na minha casa deliciosa, nos meus livros, no amor, nas viagens que ainda poderia fazer, em tudo que ainda poderia ter e viver. Por que eu estava ali? Por que me chamavam por outro nome?
Eu não podia me mexer, mas senti que a ordem fora dada, a guilhotina iria descer sobre meu pescoço. Não! A multidão foi ao delírio, como nesses campeonatos de luta livre, eles queriam sangue. Fechei os olhos bem apertados. Eu pensei: que seja breve.
O som do Nokia tocou no criado-mudo... Atordoada, atendi.
-- Dona Sandra Brazil?
-- Sim, sou eu...
(Mas eu não era Maria Antonieta? Meu pescoço não estava por um fio? A multidão não clamava por sangue e justiça?)
-- Queria confirmar sua consulta para amanhã, às 10h30...
Salva pela chatice da cofirmação da consulta médica, me levantei disposta com aquele telefonema.
Afinal, não ser um personagem da história francesa havia me livrado de uma bela "chapa quente" naquela manhã.

(Sandra Brazil, em 26.8.2011)