Quem sou eu

Minha foto
No blogue escrevo meus próprios textos (contos, crônicas, poemas, prosa poética) e também sobre os mais variados assuntos: literatura, cinema, viagens, gastronomia, amenidades, humanidades, música. Tudo que me toca. E que possa tocar os leitores.

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

El dia que me quieras

Na minha infância, sem acesso a mídias digitais, facebook, toda espécie de redes sociais, jogos eletrônicos, como filha única me restava inventar a vida: as brincadeiras, os dias, as noites, os fins de semana, os dias de chuva. Os pais naquele tempo não ficavam o tempo todo pensando que estávamos sem atividade e precisavam criar coisas para fazermos. Éramos nós que cuidávamos nós mesmos de nossa lição de casa, da organização dos brinquedos (afinal, não eram inúmeros como hoje), do nosso lazer quando não havia dinheiro no fim do mês para passear -- improvisando, por exemplo. Me lembro de furarmos uma lata de óleo e colocar os arames das rodas de um carrinho quebrado do meu irmão. A lata se transformou num carrinho e, amarrada a um barbante, era arrastada pra lá e pra cá. Essa era a novidade do mês! Isso trazia alegria e felicidade, satisfação por termos conseguido solucionar nós mesmos alguma frustração momentânea: falta de dinheiro para comprar um novo brinquedo naquele momento, não ter o que fazer, um fim de semana de tempo ruim...
Caso nada disso fosse possível, havia os livros (poucos) que ganhávamos. Como não era possível comprar inúmeros, líamos e relíamos aqueles clássicos, ou meu pai relia a mesma histórias desses livros à noite pra nós. E a cada nova leitura do mesmo texto eu descobria (sozinha!) que um livro, a cada vez, tem novo significado, é só ouvir com a imaginação.
Pois, assim, sem internet, sem facebook, sem google, a observação infantil podia ser explorada naturalmente. Muito cedo aprendi a observar minha mãe, fosse no preparo das refeições, fosse quando estava na máquina de costura fazendo sempre alguma roupa muito especial para nós surgida de um retalho qualquer. Ela era detalhista, perfeccionista, dedicada, tenaz, destemida, e... inconformada quando algo não saía como ela previra.
Também aprendi a observar meu pai. Ele era calmo, paciente, silencioso, autocrítico e autoexigente ao extremo em seu trabalho, gostava de brincar de São José e fazia manobras de carpinteiro serrando tábuas, fazendo uma casa de um cachorro que jamais chegou -- mas a casa, pra eu não ficar triste, foi transformada em uma casinha de bonecas bem pequena. Ele também serrava tábuas para as costuras de minha mãe: sobre elas, ela punha o tecido, papel carbono e passava uma carretilha para marcar as costuras. Meu pai, às vezes, cantava tangos, não sei bem por quê, boleros também. Era raro, já que ele era e é tímido. E uma das cenas de que me lembro era ele imitando Carlos Gardel em "El dia que me quieras". Eu ficava do lado, quietinha, pra nada dar errado e ele não interromper, afinal, aquilo era raro dada sua timidez.
Eu cresci, saí de casa, me afastei como todo filho que tem que cortar o cordão umbilical para amadurecer. Mas, como a vida é assim, um dia eu voltei e vi que, apesar dos cabelos grisalhos, eram as mãos da minha filha que estavam nas deles agora, e num átimo eu entendi que tem certas coisas que são um mistério que a própria vida se incumbe de solucionar. E ela ganhou os mimos todos que eu ganhei deles: as roupas mais lindas feitas pela avó perfeccionista, os quitutes feitos por demanda, um luxo! O cuidado do avô onipresente, que nos foi de uma ajuda incrível em alguns momentos. Do avô ela aprendeu certas coisas que parecem até minhas: certas tradições não se perdem numa família.
Ao longo da vida, eu sempre ficava nostálgica e cheia de memórias ao ouvir "El dia que me quieras". Nunca aprofundei para saber o que isso significava, já que outras canções da minha infância não trazem esse sentimento. Resolvi então aceitar que a vida tem certos mistérios, e que, em alguns deles, é preciso apenas sentir. Desnecessário saber a razão.